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Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

A possibilidade do fim

Foto de Taryn Elliott no Pexels

Quem me ouvir falar, ou seja, quem ler o que aqui escrevo poderá pensar que sou alguma expert nas matérias que aqui exponho – ou que tenho a pretensão de o ser. Não tenho, não sou, de todo. Não sou terapeuta nem psicóloga, nem nada que o valha. Mas as experiências que a vida me deu a provar dão‑me já pano para mangas para esta reflexão (e outras...) – que, bem entendido, disso mesmo não passa!

De há uns tempos para cá tenho vindo a reflectir sobre o fim. Ou melhor, sobre a possibilidade do fim, dentro do contexto dos relacionamentos amorosos, não sendo particularmente relevante se são longos ou mais curtos, se são casamentos ou namoros.

O fim de um relacionamento pode acontecer a qualquer casal.

Sabemos isso perfeitamente, pelo menos em teoria. Porém, guardamos a “hipótese teórica” bem lá no fundo da nossa mente, porque se estivermos demasiado conscientes dela, não conseguiremos – ou tememos não conseguir – funcionar com normalidade, estaremos constantemente tolhidos pelo receio de tão dantesca perspectiva. E a agir assim, dia após dia, o temido fim pode até deixar a esfera teórica e concretizar‑se, apenas porque a nossa conduta receosa o precipitou. Com maior ou menor consciência disso, empurramos a hipótese do fim até ao mais fundo que conseguimos no guarda‑fatos da nossa mente.

Mas, mesmo no fundo, sabemos a verdade: todos somos permeáveis à possibilidade do fim.

Se é útil não estarmos sempre a pensar nisso, para podermos funcionar com naturalidade em casal, lembramo‑nos disso, de vez em quando, não é menos útil. Resgatarmos a ideia lá do profundo poço do consciente, uma vez por outra, é até, arrisco afirmar, muito saudável.

Contemplar a possibilidade do fim obriga‑nos a confrontar várias questões: ‘quem sou eu nesta relação?’, ‘como seria fora dela?’, ‘estou a viver a minha vida como, de facto, quero?’, ‘poderia concretizar‑me mais e melhor se não estivesse nesta relação, ou mesmo em nenhuma?’, e por aí além.

É bom fazermos este check‑up ocasional a nós próprios, tomarmos o pulso à nossa existência e à nossa relação. E podemos fazê‑lo juntos ou em separado, ou ambos. Se houver demasiado receio de o fazer, talvez isso seja sintoma de que há algo (de fundamental) no relacionamento que não está no seu lugar, e, então, urge mesmo reunir coragem para fazer esta avaliação.

Termos a noção do fim, de uma forma pacífica e não alarmada, pode levar‑nos a um comportamento que creio ser de máxima importância no nosso dia‑a‑dia (quando as rotinas do quotidiano se impõem e ocupam espaço entre o casal, quase sem darmos conta): o de não tomarmos o outro por garantido.

Vivemos com um ser pensante, com sentimentos distintos e independentes dos nossos, com desejos, emoções e aspirações próprias. A consciência (serena, sublinho) do possível fim, pode dar‑nos a capacidade renovada de admirarmos o outro como indivíduo fora da nossa esfera íntima, que também o é, que também o somos.

Não tomar o outro por garantido é essencial, para o valorizar todos os dias, para viver cada dia com a maior dose de honestidade mútua possível. Porque essa honestidade nunca é total, já o sabemos todos também, e isso não faz mal. Todos precisamos de ter pensamentos, ideias, sentimentos até, privados e só nossos, e precisamos de os manter assim, pois são traço inestimável da nossa individualidade.

E, às tantas, é mesmo disso que se trata: manter sã e inteira a nossa individualidade, estando numa relação. Manter são e inteiro o respeito pela individualidade do outro. Ao fazê‑lo estaremos também, acredito, a renovar a admiração pelo outro, que nos lembramos de ter sentido lá bem no início de toda história comum, e a reavivar a energia para continuar a caminhada conjunta (já bastante longa para alguns, mais curta ainda para outros, mas não menos necessitada de um refrescar de energias por isso!).

Creio que o segredo esteja, afinal, no equilíbrio: nem estar constantemente a viver no receio do fim, resumindo os dias a um pânico irracional, nem acreditar cega e tolamente que isso só sucede aos outros – pois, acreditar piamente que se está numa relação absolutamente estanque, cristaliza as vivências do casal, e pode anular a percepção da necessidade de diálogo, que a todos faz falta.

Portanto, equilíbrio. Fácil, não? Pois não, fácil não será, eu não disse que era. Mas será, eventualmente, mais difícil, se se varrer a poeira dos dias para debaixo do tapete, recusando parar um pouco para pensar.

Pensar no fim não é necessariamente o fim do caminho a dois. Pode ser tão‑só uma etapa de reflexiva retomada de fôlego, de entendimento profundo de si mesmo, e redescoberta do outro.

Pensar na possibilidade do fim pode muito bem ser o início. Um início muito mais feliz.

 

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