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Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

De X a Z

Foto de Alexander Grey no Pexels

Quem tem filhos a terminar o 9º ano, deve saber, como eu, o que esta altura do ano – de há uns anos para cá – significa: exames, stress, noites mal dormidas, prole com os nervos à flor da pele e na ponta da língua, pais prestes a perderem o juízo e o bom senso!

Quem tem filhas, sobe uns quantos níveis nesta bitola do demo, pois o famigerado baile de finalistas calha nesta altura também – finalistas de quê, pergunto‑me, se a vida académica continua, no mínimo, até ao 12º ano (ou, havendo sorte e afinco, e poupanças suficientes no banco, até ao horizonte mais alargado dos níveis universitários). Não que o baile não seja importante para os outros géneros, mas as raparigas cis tendem, creio, a enlouquecer com isso um pouco mais além do razoável, a elas e aos pais, com tanto preparativo, e plano, e prova de vestidos, e depois os sapatos, ai e a maquilhagem, e os acessórios (lá vamos nós ao baú das quinquilharias dos casamentos, ver se temos alguma coisa que agrade ao gosto particular e exigente da miss teen...socorro...), e as milhares de conversas ao telefone, fotos e áudios trocados com as amigas (a sério... socorro!).

É uma lista que custa muito preencher (literalmente, custa muito dinheiro, entre o preço do jantar e a farpela toda, o mês fica nas lonas...) e parece nunca mais acabar, porque depois do vestido é preciso um soutien com alças especiais, e depois nenhuma pulseira combina, a carteira já não dá com os sapatos, e eu já só quero enrolar‑me na cama em posição fetal e regressar ao útero, porque este lado da parentalidade está a deixar‑me doida. E muito, muito cansada.

Aos poucos, a indumentária foi‑se completando, à custa de muito sangue, suor e lágrimas. Depois do Pesadelo em PromStreet – em busca do vestido-perdido-da-avó-que fica-a-matar-só-precisa-de-ser-tingido-de-preto-será-que-vai-dar?, veio a sequela PromStreet 2 – desta vez o pesadelo é real: não-deu-para-tingir-temos-mesmo-de-comprar-um-novo! E ainda o Regresso à Sapataria I, II e III!

(Agora a sério, quantas crónicas encontram vocês por aí, que misturem, com tanto primor e humor, referências cinematográficas dos anos 80, como esta? Hãn? Admitam, que categoria de crónica, esta!)

Foi na sapataria III, onde a minha adolescente por fim encontrou o calçado dos seus sonhos, qual Cinderela gótica da noite dos malditos, que ocorreu a conversa que me fez reflectir e escrever esta crónica – não, esta crónica não é sobre as graças e desgraças de uma mãe de adolescente, embora muito houvesse para discorrer sobre o tema.

A funcionária que nos atendeu, enquanto registava a compra, resolveu aconselhar a minha filha, como mulher mais velha que é (caso eu não estivesse a cumprir essa função... imagino...), a não mostrar com antecedência às amigas os sapatos novos, e, simplesmente, deixá‑las vê‑los só na festa. «Porque na tua idade, as amigas não são verdadeiras, há muita inveja, muita dor de cotovelo. Tu pensas que elas são tuas amigas, mas não são, têm inveja de ti, e até te podem dizer que os sapatos são feios.»

Eu ia acenando com a cabeça em concordância geracional, embora soubesse já, pela minha parental experiência, que este tipo de conselhos caem em ouvidos rotos e não vale a pena ilustrarmos a juventude com as inúmeras histórias da nossa vasta experiência, porque simples e directamente não querem saber. Há que deixá‑los percorrerem o seu percurso, e sabemos como custa vê‑los tropeçar e cair nos mesmos buracos, e mais uns quantos novinhos em folha, mas nada podemos fazer de diferente: só a sua aprendizagem rente até ao osso, a doer na sua carne, lhes ficará impressa na memória.

A bem‑intencionada senhora continuou, contando histórias da sua adolescência e outras a que calhara de assistir há alguns tempos, como a de uma grupeta de meninas a rirem à socapa da “amiga” que, incauta e desatenta, levava no rabo uma mancha vermelha de sangue – a quem a senhora alertou, disfarçadamente, e aconselhou a ir a uma casa de banho limpar‑se e tapar com o casaco pela cintura a mácula menstrual, não deixando de a prevenir sobre as presumíveis amiguinhas, que foram tudo menos isso, e nem sequer a avisaram de nada.

Quando saímos da sapataria, a minha filha apenas me disse: – Que triste, a tua geração! Eu e as minhas amigas não somos nada assim, tomamos conta umas das outras!

Fiquei a pensar nisso.

Que direito temos de acautelar os nossos filhos – filhas, neste caso – tendo por base experiências nas quais elas não se revêem de forma alguma, e que nada têm a ver com as suas experiências e formas de estar? E será mesmo geracional, ou seja, será esta minha geração X incapaz de confiar e tentar separar as águas das vivências todas, de forma mais objectiva?

Crescemos sem computadores nem tecnologias avançadas, e, contudo, temos, ou parecemos ter, mais ranço por resolver e mais cicatrizes a doer do que esta geração Z, que cresce entre momentos instagramáveis e reputação facilmente difamável em segundos, mas no entanto valoriza a verdade e a honestidade entre pares! Coloquei o ponto de exclamação, mas se calhar seria o de interrogação mais adequado.

Estaremos a interferir indevidamente, com as nossas experiências azedas e caducadas, na experimentação que ainda é a jovem vida dos nossos rebentos? Creio que advertir para as possibilidades mal não fará, mas devemos ter mais em conta as suas formas de ver a realidade, que já é tão díspar e distante da nossa com a idade deles. E aqui faço um mea culpa grande, pois eu tendo muito a querer que ela siga sempre os meus sábios conselhos, a despeito da sua própria opinião ou ponto de vista.

Este tempo é o deles, e em nada se compara ao nosso quando tínhamos a sua idade. Para quê impingir‑lhes a nossa experiência que não só já está absurdamente fora de prazo, como, as mais das vezes, nem sequer tem uma correspondência directa com a vida de hoje?

Por certo que haverá N situações em que a nossa sapiência acumulada lhes poderá ser realmente útil, e é por aí que devemos avançar, e não seguir na teimosa e surda via do “no meu tempo, é que era!”, tal como os nossos pais fizeram connosco, e se bem se lembram, nós também não gostávamos nada de ouvir!

O conflito de gerações, ou a anglo‑saxónica generation gap, repete-se ad aeternum, como uma sucessão de espelhos a reflectirem-se até ao infinito. Aconteceu com os nossos pais, e eles com os seus, ocorrerá aos nossos filhos com os nossos netos (quero tanto assistir de camarote!).

Parece ser inevitável. Mas não tem de ser insuportável nem surdo. Podemos tentar sair da nossa armadura fossilizada e procurar ouvir melhor e entender mais a diferença que os nossos filhos hasteiam como bandeira para a sua forma de estar.

E temos de ser nós, a fazê‑lo, ou pelo menos, a dar o primeiro passo, a estender a mão e a disponibilidade do nosso ouvido. Se vamos esperar serem eles a começar, nem daqui à geração seguinte nos safamos! É preciso um esforço extra para se chegar a um bom fim. Ou seja, um X para se chegar a Z.

 

 

Anatomia do abraço

Foto de Anna Shvets no Pexels

Não se vive sem um bom abraço. Ou pelo menos, viver custa mais.

Não é à toa que me despeço quase sempre dos leitores, que têm a gentileza de me deixarem os seus comentários, com um abraço. Sei bem que não lhes posso oferecê-lo senão virtualmente, mas o que formulo é o desejo sincero que o recebam, não necessariamente o meu, mas aquele abraço que lhes faz mais falta, seja o bálsamo que serena onde dói mais, seja a celebração que os deixa mais felizes.

Porque um abraço é tudo de bom. E o que é mais encantador no abraço, quanto a mim, é que nele podemos ser ora os emissores, ora os receptores, ou até ambos ao mesmo tempo.

Todos sabemos como um bom abraço pode ser remédio santo. É panaceia garantida para uma série de maleitas, desde o cansaço agudo às saudades mais graves.

Mas não se pense que os abraços são todos iguais, nem que servem todos os mesmos fins.

Há, com certeza, os abraços genéricos, mas são apenas um pequeno cumprimento que se administra sem muito cuidado, e que se recebe em modo anti‑inflamatório ligeiro. E com os anti‑inflamatórios, nunca se sabe: às vezes uma dose é suficiente, outras nem chegam a surtir efeito.

Para condições mais particulares, esse tratamento tópico não basta, são necessários abraços mais específicos.

Por exemplo, o abraço‑envelope (também apelidado de abraço‑cobertor), que abriga o destinatário envolvendo‑o por completo, como um envelope que o sela, ou como um cobertor que aconchega. O abraçado pode repousar a cabeça num ombro ou no peito, rodeando, por sua vez, a cintura do abraçador com os seus braços. Este é um abraço muito indicado em crises de adolescência, corações partidos generalizados, e, particularmente em situações de dor profunda por luto – mas neste último caso só é aconselhável se o abraçador já tiver experienciado por si próprio a sintomatologia da partida de um ente amado, pois de contrário poderá não saber aplicar com rigor a pressão certa pelo tempo adequado, nem a dose correcta de ternura a dispensar.

Há também a particularidade do abraço‑cruzado, no qual os braços ficam um por cima e outro por baixo. Este é o abraço que geralmente é aplicado após um longo período de ausência ou de distanciamento entre os dois interlocutores. O efeito é cruzado e bidireccional, porque o sintoma de saudade pós-traumática tem de ser mitigado nos dois sentidos. Há que abraçar e ser abraçado, para que o alívio da dor seja alcançado e os efeitos sejam duradouros.

Não é indiferente se os braços dos interlocutores estão por cima ou por baixo. Quando abraçamos alguém pelos ombros, para além do efeito aconchego, há também o efeito acolhimento, as boas‑vindas que damos a quem queremos bem. Se queremos celebrar o outro, por um sucesso alcançado, ou por cumplicidade com a sua ocasional alegria, tendemos a abraçá-lo por baixo dos seus braços, como se erguêssemos o afecto e o bem que lhe desejamos, à laia de trofeu.

Mas há uma ressalva que é imprescindível fazer. Os abraços só são autênticos se forem administrados de olhos fechados. Só de olhos fechados podem realmente surtir o efeito desejado. Porque tudo o que é sublime e promove felicidade usufruímos de olhos fechados, como um beijo apaixonado, uma iguaria deliciosa, ou uma música que nos enche a alma. Um bom e verdadeiro abraço não é diferente. Se assim não forem, não são abraços de verdade, mas uma espécie de sucedâneos de circunstância, restringidos por um qualquer protocolo, e que não oferecem nem conforto nem afecto. Coíbam-se de os dar e esquivem-se de os receber!

Porque, afinal, um abraço é o que nos une, desde sempre e para sempre: desde o nascimento, quando somos logo envolvidos no cálido entorno de quem mais nos ama e tanto esperou pela nossa chegada; até à morte, onde a memória do último abraço consola a nossa eterna saudade.

O abraço é o que nos faz sentir livres e seguros na mesma medida, porque nele o amor flui de uma pele para a outra, de um batimento cardíaco para o outro.

Por isso, abracem, que melhor remédio não há. Abracem muito, tanto quanto precisem, tanto quanto possam. Dêem o vosso e recebam o que vos é dado, com a mesma intensidade.

Ah, e caso estejam a perguntar‑se, o meu abraço de eleição é o que é dado ao mesmo tempo, sem receita, sem hora marcada, nem dose recomendada. Cura‑me tudo!

E vocês, qual é o vosso abraço preferido?

 

Anatomia do abraço [Reel]

 

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