Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

O bom, o mau e o cinzento

O bom o mau e o cinzento.jpg

Todos gostaríamos que as coisas fossem simples: que as pessoas que odiamos ou que nos magoaram fossem 100% más; que as pessoas que amamos e nos fazem bem, fossem inteiramente boas.

Um xadrez perfeito: peças brancas de um lado e pretas do outro. Ou como nos filmes western antigos, em que o mau da fita trajava sempre de negro, para ser claramente distinguível do herói, mesmo na tela a preto e branco.

Mas sabemos – ou deveríamos saber – que a realidade não é assim. Está recheada de zonas cinzentas, e o carácter da maior parte dos seres humanos é igualmente nublado, onde as sombras e a luz se misturam.

Não acredito que haja alguém 100% bom ou 100% mau. Acredito, sim, que seja possível uma intrínseca natureza de carácter, uma espécie de tendência mais vincada, que pesa mais de um lado da balança da índole que do outro, seja inata ou adquirida, ou mesmo um pouco de ambas.

Mas acredito também que há pessoas intrinsecamente boas capazes de fazer coisas más, tal como há pessoas intrinsecamente malévolas capazes de serem generosas. Mais do que acreditar, sei que pessoas assim existem, e julgo que desta forma, muito provavelmente, o seremos todos.

Conheci, há muitos anos, uma senhora, de extremo mau feitio e famosa no seu meio pela sua fria ruindade, em particular contra animais. Costumava espalhar veneno no seu quintal para matar os gatos incautos dos arredores, que por ali ousassem aventurar‑se. Fazia‑o sem qualquer pejo nem o mais pequeno prurido de consciência. O seu desprezo por toda e qualquer vida animal era bastante conhecido em toda a vizinhança. Contudo, eu vi‑a brincar, como se fosse garota de novo, com o meu cão, quando se cruzava com ele na rua – e julgava não estar ninguém a ver. Se eu não tivesse visto com os meus próprios olhos, nunca teria acreditado.

Da mesma forma, mas nos seus antípodas, havia uma outra senhora, na mesma vizinhança, que era muito conhecida por adorar e resgatar animais. Porém, isso não a impediu de, certa vez, chamar uma moça vizinha para vir afogar os gatinhos que uma gata vadia tivera na sua propriedade. Fê‑lo, não sem algumas inquietações de alma e consciência (imagino), mas, porventura, concomitantemente convencida que era o melhor que podia, naquele momento, fazer.

Como é possível que alguém com um determinado traço intrínseco de carácter seja capaz de proceder no seu mais perfeito oposto? Como não sei, mas sei que é possível.

Este mundo é complicado, por muito que o queiramos simples. Por isso que gerir amores, amizades e laços familiares é tão trabalhoso. Porque nada nem ninguém é 100% de coisa alguma. Somos todos uma mescla (de percentagem difícil de quantificar) de muitas características diferentes, muitas delas antagónicas, incoerentes, mas que coexistem em nós, tornando‑nos não mais do que aquilo que somos: seres ilógicos, ou quiçá, apenas humanos!

Quando um relacionamento – seja de que natureza for, de amor conjugal, de amizade, de afecto familiar – se desmorona em conflito aberto, queremos, à viva força, decretar a maleficência do ser visado, porque nos atingiu onde mais nos doía, porque nos decepcionou. Queremos que essa seja uma pessoa intrinsecamente má. Todas as partes felizes, positivas e boas da convivência anterior, são imediatamente obliteradas e reduzidas a mera farsa, a ledo engano nosso, pelo qual, cruel e friamente, calculadamente até, nos fizeram passar, para nos ferirem mais fundo logo a seguir, para que o golpe final fosse ainda mais doloroso e fatal! Que outra razão poderia existir para aquela pessoa ter sido, outrora, aparentemente tão agradável e gentil connosco, senão a mais pura malvadez?

Nesse sentido, os memes de frases feitas que pelas redes sociais abundam, ilustrativas deste género de estados de espírito traído, do tipo «quem deixou de ser teu amigo é porque nunca o foi», cativam‑nos e ressoam cá dentro como verdades inabaláveis – porque glorificam uma justificação simplista, que nos descansa e resolve, sem termos de analisar a nossa quota parte da culpa (que sempre existe, ainda que ínfima), e nos permite catalogar a realidade facilmente: maus para um lado, bons para o outro, estando nós invariavelmente nesta última categoria, bem entendido. Até a dor pelas saudades dos momentos felizes que tivemos com quem nos magoou, torna‑se menos aguda, quando nos convencemos que essas pessoas não passam de gente execrável que nos atraiçoou.

Eu sei que há mesmo pessoas execráveis (talvez não a 100%, mais aí a uns bons 85%!), sem escrúpulos nem pudor em enganar o próximo, nem que seja apenas nos afectos que fingem nutrir. Mas penso que pessoas dessas se topam à distância, e não assim tão hábeis em fingir que o não são! A experiência, que a idade nos vai conferindo, fornece‑nos as ferramentas necessárias para as detectar atempadamente.

As outras, as mais cinzentas e menos detectáveis, talvez pensem o mesmo sobre nós, e no seu entendimento, as más da fita (intrinsecamente ou não) não foram elas!

Às pessoas que me defraudaram de alguma maneira, que me enganaram e me magoaram, no curso dos meus 49 anos, ser‑me‑ia muito útil e cómodo atribuir‑lhes o estatuto definitivo e irrevogável de pessoas más, com um selo de fraca qualidade bem escarrapachado nas suas testas!

Mas eu sei que o não são – não em absoluto; não mais do que eu, provavelmente. Porque elas também têm outros amigos, família e amores, que as acarinham e amam, também têm valores que prezo, também lutam por tantas coisas correctas e benévolas no seu dia‑a‑dia, também fazem festas aos cães dos outros na rua.

Ninguém está livre de magoar e de ser magoado. Contudo, não somos sempre a maldade personificada quando o fazemos, nem os outros que nos ferem serão diabos em forma de gente. Entendermos isto é percebermos que a realidade não se pinta a duas cores, não se toca a sol‑e‑dó, e não cabe apenas na bitola categórica e simplista do bem ou do mal. Não é nenhum filme de cowboys.

Quem sabe, se conseguirmos apreender, profunda e verdadeiramente, esta noção, percebamos, por fim, quão inútil, emocionalmente dispendioso, ou apenas cretino é odiar e mantermos este eterno duelo com quem nos feriu?

 

[Imagem criada com recurso a IA]

O bom, o mau e o cinzento - Reel (ligar o som)

 

Mais sobre mim

Posts recentes

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Mais visitados

  • O bom, o mau e o cinzento

    23 Julho, 2024

    Todos gostaríamos que as coisas fossem simples: que as pessoas que odiamos ou que nos (...)

  • Anatomia do abraço

    08 Maio, 2024

    Não se vive sem um bom abraço. Ou pelo menos, viver custa mais. Não é à toa que me (...)

  • O monstro cá dentro

    31 Janeiro, 2024

    Às vezes parece-me que temos todos o mesmo rosto, que nada nas feições de todos os seres (...)

  • Estrelato

    10 Janeiro, 2024

    Ultimamente, tenho-me entretido a ver documentários e filmes sobre a vida de artistas (...)

  • Quando eu morrer

    16 Outubro, 2023

    Quando eu morrer, gostava que se escrevesse na minha lápide “ Deu o seu melhor ”. Mesmo (...)

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D