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Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

O bom, o mau e o cinzento

O bom o mau e o cinzento.jpg

Todos gostaríamos que as coisas fossem simples: que as pessoas que odiamos ou que nos magoaram fossem 100% más; que as pessoas que amamos e nos fazem bem, fossem inteiramente boas.

Um xadrez perfeito: peças brancas de um lado e pretas do outro. Ou como nos filmes western antigos, em que o mau da fita trajava sempre de negro, para ser claramente distinguível do herói, mesmo na tela a preto e branco.

Mas sabemos – ou deveríamos saber – que a realidade não é assim. Está recheada de zonas cinzentas, e o carácter da maior parte dos seres humanos é igualmente nublado, onde as sombras e a luz se misturam.

Não acredito que haja alguém 100% bom ou 100% mau. Acredito, sim, que seja possível uma intrínseca natureza de carácter, uma espécie de tendência mais vincada, que pesa mais de um lado da balança da índole que do outro, seja inata ou adquirida, ou mesmo um pouco de ambas.

Mas acredito também que há pessoas intrinsecamente boas capazes de fazer coisas más, tal como há pessoas intrinsecamente malévolas capazes de serem generosas. Mais do que acreditar, sei que pessoas assim existem, e julgo que desta forma, muito provavelmente, o seremos todos.

Conheci, há muitos anos, uma senhora, de extremo mau feitio e famosa no seu meio pela sua fria ruindade, em particular contra animais. Costumava espalhar veneno no seu quintal para matar os gatos incautos dos arredores, que por ali ousassem aventurar‑se. Fazia‑o sem qualquer pejo nem o mais pequeno prurido de consciência. O seu desprezo por toda e qualquer vida animal era bastante conhecido em toda a vizinhança. Contudo, eu vi‑a brincar, como se fosse garota de novo, com o meu cão, quando se cruzava com ele na rua – e julgava não estar ninguém a ver. Se eu não tivesse visto com os meus próprios olhos, nunca teria acreditado.

Da mesma forma, mas nos seus antípodas, havia uma outra senhora, na mesma vizinhança, que era muito conhecida por adorar e resgatar animais. Porém, isso não a impediu de, certa vez, chamar uma moça vizinha para vir afogar os gatinhos que uma gata vadia tivera na sua propriedade. Fê‑lo, não sem algumas inquietações de alma e consciência (imagino), mas, porventura, concomitantemente convencida que era o melhor que podia, naquele momento, fazer.

Como é possível que alguém com um determinado traço intrínseco de carácter seja capaz de proceder no seu mais perfeito oposto? Como não sei, mas sei que é possível.

Este mundo é complicado, por muito que o queiramos simples. Por isso que gerir amores, amizades e laços familiares é tão trabalhoso. Porque nada nem ninguém é 100% de coisa alguma. Somos todos uma mescla (de percentagem difícil de quantificar) de muitas características diferentes, muitas delas antagónicas, incoerentes, mas que coexistem em nós, tornando‑nos não mais do que aquilo que somos: seres ilógicos, ou quiçá, apenas humanos!

Quando um relacionamento – seja de que natureza for, de amor conjugal, de amizade, de afecto familiar – se desmorona em conflito aberto, queremos, à viva força, decretar a maleficência do ser visado, porque nos atingiu onde mais nos doía, porque nos decepcionou. Queremos que essa seja uma pessoa intrinsecamente má. Todas as partes felizes, positivas e boas da convivência anterior, são imediatamente obliteradas e reduzidas a mera farsa, a ledo engano nosso, pelo qual, cruel e friamente, calculadamente até, nos fizeram passar, para nos ferirem mais fundo logo a seguir, para que o golpe final fosse ainda mais doloroso e fatal! Que outra razão poderia existir para aquela pessoa ter sido, outrora, aparentemente tão agradável e gentil connosco, senão a mais pura malvadez?

Nesse sentido, os memes de frases feitas que pelas redes sociais abundam, ilustrativas deste género de estados de espírito traído, do tipo «quem deixou de ser teu amigo é porque nunca o foi», cativam‑nos e ressoam cá dentro como verdades inabaláveis – porque glorificam uma justificação simplista, que nos descansa e resolve, sem termos de analisar a nossa quota parte da culpa (que sempre existe, ainda que ínfima), e nos permite catalogar a realidade facilmente: maus para um lado, bons para o outro, estando nós invariavelmente nesta última categoria, bem entendido. Até a dor pelas saudades dos momentos felizes que tivemos com quem nos magoou, torna‑se menos aguda, quando nos convencemos que essas pessoas não passam de gente execrável que nos atraiçoou.

Eu sei que há mesmo pessoas execráveis (talvez não a 100%, mais aí a uns bons 85%!), sem escrúpulos nem pudor em enganar o próximo, nem que seja apenas nos afectos que fingem nutrir. Mas penso que pessoas dessas se topam à distância, e não assim tão hábeis em fingir que o não são! A experiência, que a idade nos vai conferindo, fornece‑nos as ferramentas necessárias para as detectar atempadamente.

As outras, as mais cinzentas e menos detectáveis, talvez pensem o mesmo sobre nós, e no seu entendimento, as más da fita (intrinsecamente ou não) não foram elas!

Às pessoas que me defraudaram de alguma maneira, que me enganaram e me magoaram, no curso dos meus 49 anos, ser‑me‑ia muito útil e cómodo atribuir‑lhes o estatuto definitivo e irrevogável de pessoas más, com um selo de fraca qualidade bem escarrapachado nas suas testas!

Mas eu sei que o não são – não em absoluto; não mais do que eu, provavelmente. Porque elas também têm outros amigos, família e amores, que as acarinham e amam, também têm valores que prezo, também lutam por tantas coisas correctas e benévolas no seu dia‑a‑dia, também fazem festas aos cães dos outros na rua.

Ninguém está livre de magoar e de ser magoado. Contudo, não somos sempre a maldade personificada quando o fazemos, nem os outros que nos ferem serão diabos em forma de gente. Entendermos isto é percebermos que a realidade não se pinta a duas cores, não se toca a sol‑e‑dó, e não cabe apenas na bitola categórica e simplista do bem ou do mal. Não é nenhum filme de cowboys.

Quem sabe, se conseguirmos apreender, profunda e verdadeiramente, esta noção, percebamos, por fim, quão inútil, emocionalmente dispendioso, ou apenas cretino é odiar e mantermos este eterno duelo com quem nos feriu?

 

[Imagem criada com recurso a IA]

O bom, o mau e o cinzento - Reel (ligar o som)

 

A possibilidade do fim

Foto de Taryn Elliott no Pexels

Quem me ouvir falar, ou seja, quem ler o que aqui escrevo poderá pensar que sou alguma expert nas matérias que aqui exponho – ou que tenho a pretensão de o ser. Não tenho, não sou, de todo. Não sou terapeuta nem psicóloga, nem nada que o valha. Mas as experiências que a vida me deu a provar dão‑me já pano para mangas para esta reflexão (e outras...) – que, bem entendido, disso mesmo não passa!

De há uns tempos para cá tenho vindo a reflectir sobre o fim. Ou melhor, sobre a possibilidade do fim, dentro do contexto dos relacionamentos amorosos, não sendo particularmente relevante se são longos ou mais curtos, se são casamentos ou namoros.

O fim de um relacionamento pode acontecer a qualquer casal.

Sabemos isso perfeitamente, pelo menos em teoria. Porém, guardamos a “hipótese teórica” bem lá no fundo da nossa mente, porque se estivermos demasiado conscientes dela, não conseguiremos – ou tememos não conseguir – funcionar com normalidade, estaremos constantemente tolhidos pelo receio de tão dantesca perspectiva. E a agir assim, dia após dia, o temido fim pode até deixar a esfera teórica e concretizar‑se, apenas porque a nossa conduta receosa o precipitou. Com maior ou menor consciência disso, empurramos a hipótese do fim até ao mais fundo que conseguimos no guarda‑fatos da nossa mente.

Mas, mesmo no fundo, sabemos a verdade: todos somos permeáveis à possibilidade do fim.

Se é útil não estarmos sempre a pensar nisso, para podermos funcionar com naturalidade em casal, lembramo‑nos disso, de vez em quando, não é menos útil. Resgatarmos a ideia lá do profundo poço do consciente, uma vez por outra, é até, arrisco afirmar, muito saudável.

Contemplar a possibilidade do fim obriga‑nos a confrontar várias questões: ‘quem sou eu nesta relação?’, ‘como seria fora dela?’, ‘estou a viver a minha vida como, de facto, quero?’, ‘poderia concretizar‑me mais e melhor se não estivesse nesta relação, ou mesmo em nenhuma?’, e por aí além.

É bom fazermos este check‑up ocasional a nós próprios, tomarmos o pulso à nossa existência e à nossa relação. E podemos fazê‑lo juntos ou em separado, ou ambos. Se houver demasiado receio de o fazer, talvez isso seja sintoma de que há algo (de fundamental) no relacionamento que não está no seu lugar, e, então, urge mesmo reunir coragem para fazer esta avaliação.

Termos a noção do fim, de uma forma pacífica e não alarmada, pode levar‑nos a um comportamento que creio ser de máxima importância no nosso dia‑a‑dia (quando as rotinas do quotidiano se impõem e ocupam espaço entre o casal, quase sem darmos conta): o de não tomarmos o outro por garantido.

Vivemos com um ser pensante, com sentimentos distintos e independentes dos nossos, com desejos, emoções e aspirações próprias. A consciência (serena, sublinho) do possível fim, pode dar‑nos a capacidade renovada de admirarmos o outro como indivíduo fora da nossa esfera íntima, que também o é, que também o somos.

Não tomar o outro por garantido é essencial, para o valorizar todos os dias, para viver cada dia com a maior dose de honestidade mútua possível. Porque essa honestidade nunca é total, já o sabemos todos também, e isso não faz mal. Todos precisamos de ter pensamentos, ideias, sentimentos até, privados e só nossos, e precisamos de os manter assim, pois são traço inestimável da nossa individualidade.

E, às tantas, é mesmo disso que se trata: manter sã e inteira a nossa individualidade, estando numa relação. Manter são e inteiro o respeito pela individualidade do outro. Ao fazê‑lo estaremos também, acredito, a renovar a admiração pelo outro, que nos lembramos de ter sentido lá bem no início de toda história comum, e a reavivar a energia para continuar a caminhada conjunta (já bastante longa para alguns, mais curta ainda para outros, mas não menos necessitada de um refrescar de energias por isso!).

Creio que o segredo esteja, afinal, no equilíbrio: nem estar constantemente a viver no receio do fim, resumindo os dias a um pânico irracional, nem acreditar cega e tolamente que isso só sucede aos outros – pois, acreditar piamente que se está numa relação absolutamente estanque, cristaliza as vivências do casal, e pode anular a percepção da necessidade de diálogo, que a todos faz falta.

Portanto, equilíbrio. Fácil, não? Pois não, fácil não será, eu não disse que era. Mas será, eventualmente, mais difícil, se se varrer a poeira dos dias para debaixo do tapete, recusando parar um pouco para pensar.

Pensar no fim não é necessariamente o fim do caminho a dois. Pode ser tão‑só uma etapa de reflexiva retomada de fôlego, de entendimento profundo de si mesmo, e redescoberta do outro.

Pensar na possibilidade do fim pode muito bem ser o início. Um início muito mais feliz.

 

De X a Z

Foto de Alexander Grey no Pexels

Quem tem filhos a terminar o 9º ano, deve saber, como eu, o que esta altura do ano – de há uns anos para cá – significa: exames, stress, noites mal dormidas, prole com os nervos à flor da pele e na ponta da língua, pais prestes a perderem o juízo e o bom senso!

Quem tem filhas, sobe uns quantos níveis nesta bitola do demo, pois o famigerado baile de finalistas calha nesta altura também – finalistas de quê, pergunto‑me, se a vida académica continua, no mínimo, até ao 12º ano (ou, havendo sorte e afinco, e poupanças suficientes no banco, até ao horizonte mais alargado dos níveis universitários). Não que o baile não seja importante para os outros géneros, mas as raparigas cis tendem, creio, a enlouquecer com isso um pouco mais além do razoável, a elas e aos pais, com tanto preparativo, e plano, e prova de vestidos, e depois os sapatos, ai e a maquilhagem, e os acessórios (lá vamos nós ao baú das quinquilharias dos casamentos, ver se temos alguma coisa que agrade ao gosto particular e exigente da miss teen...socorro...), e as milhares de conversas ao telefone, fotos e áudios trocados com as amigas (a sério... socorro!).

É uma lista que custa muito preencher (literalmente, custa muito dinheiro, entre o preço do jantar e a farpela toda, o mês fica nas lonas...) e parece nunca mais acabar, porque depois do vestido é preciso um soutien com alças especiais, e depois nenhuma pulseira combina, a carteira já não dá com os sapatos, e eu já só quero enrolar‑me na cama em posição fetal e regressar ao útero, porque este lado da parentalidade está a deixar‑me doida. E muito, muito cansada.

Aos poucos, a indumentária foi‑se completando, à custa de muito sangue, suor e lágrimas. Depois do Pesadelo em PromStreet – em busca do vestido-perdido-da-avó-que fica-a-matar-só-precisa-de-ser-tingido-de-preto-será-que-vai-dar?, veio a sequela PromStreet 2 – desta vez o pesadelo é real: não-deu-para-tingir-temos-mesmo-de-comprar-um-novo! E ainda o Regresso à Sapataria I, II e III!

(Agora a sério, quantas crónicas encontram vocês por aí, que misturem, com tanto primor e humor, referências cinematográficas dos anos 80, como esta? Hãn? Admitam, que categoria de crónica, esta!)

Foi na sapataria III, onde a minha adolescente por fim encontrou o calçado dos seus sonhos, qual Cinderela gótica da noite dos malditos, que ocorreu a conversa que me fez reflectir e escrever esta crónica – não, esta crónica não é sobre as graças e desgraças de uma mãe de adolescente, embora muito houvesse para discorrer sobre o tema.

A funcionária que nos atendeu, enquanto registava a compra, resolveu aconselhar a minha filha, como mulher mais velha que é (caso eu não estivesse a cumprir essa função... imagino...), a não mostrar com antecedência às amigas os sapatos novos, e, simplesmente, deixá‑las vê‑los só na festa. «Porque na tua idade, as amigas não são verdadeiras, há muita inveja, muita dor de cotovelo. Tu pensas que elas são tuas amigas, mas não são, têm inveja de ti, e até te podem dizer que os sapatos são feios.»

Eu ia acenando com a cabeça em concordância geracional, embora soubesse já, pela minha parental experiência, que este tipo de conselhos caem em ouvidos rotos e não vale a pena ilustrarmos a juventude com as inúmeras histórias da nossa vasta experiência, porque simples e directamente não querem saber. Há que deixá‑los percorrerem o seu percurso, e sabemos como custa vê‑los tropeçar e cair nos mesmos buracos, e mais uns quantos novinhos em folha, mas nada podemos fazer de diferente: só a sua aprendizagem rente até ao osso, a doer na sua carne, lhes ficará impressa na memória.

A bem‑intencionada senhora continuou, contando histórias da sua adolescência e outras a que calhara de assistir há alguns tempos, como a de uma grupeta de meninas a rirem à socapa da “amiga” que, incauta e desatenta, levava no rabo uma mancha vermelha de sangue – a quem a senhora alertou, disfarçadamente, e aconselhou a ir a uma casa de banho limpar‑se e tapar com o casaco pela cintura a mácula menstrual, não deixando de a prevenir sobre as presumíveis amiguinhas, que foram tudo menos isso, e nem sequer a avisaram de nada.

Quando saímos da sapataria, a minha filha apenas me disse: – Que triste, a tua geração! Eu e as minhas amigas não somos nada assim, tomamos conta umas das outras!

Fiquei a pensar nisso.

Que direito temos de acautelar os nossos filhos – filhas, neste caso – tendo por base experiências nas quais elas não se revêem de forma alguma, e que nada têm a ver com as suas experiências e formas de estar? E será mesmo geracional, ou seja, será esta minha geração X incapaz de confiar e tentar separar as águas das vivências todas, de forma mais objectiva?

Crescemos sem computadores nem tecnologias avançadas, e, contudo, temos, ou parecemos ter, mais ranço por resolver e mais cicatrizes a doer do que esta geração Z, que cresce entre momentos instagramáveis e reputação facilmente difamável em segundos, mas no entanto valoriza a verdade e a honestidade entre pares! Coloquei o ponto de exclamação, mas se calhar seria o de interrogação mais adequado.

Estaremos a interferir indevidamente, com as nossas experiências azedas e caducadas, na experimentação que ainda é a jovem vida dos nossos rebentos? Creio que advertir para as possibilidades mal não fará, mas devemos ter mais em conta as suas formas de ver a realidade, que já é tão díspar e distante da nossa com a idade deles. E aqui faço um mea culpa grande, pois eu tendo muito a querer que ela siga sempre os meus sábios conselhos, a despeito da sua própria opinião ou ponto de vista.

Este tempo é o deles, e em nada se compara ao nosso quando tínhamos a sua idade. Para quê impingir‑lhes a nossa experiência que não só já está absurdamente fora de prazo, como, as mais das vezes, nem sequer tem uma correspondência directa com a vida de hoje?

Por certo que haverá N situações em que a nossa sapiência acumulada lhes poderá ser realmente útil, e é por aí que devemos avançar, e não seguir na teimosa e surda via do “no meu tempo, é que era!”, tal como os nossos pais fizeram connosco, e se bem se lembram, nós também não gostávamos nada de ouvir!

O conflito de gerações, ou a anglo‑saxónica generation gap, repete-se ad aeternum, como uma sucessão de espelhos a reflectirem-se até ao infinito. Aconteceu com os nossos pais, e eles com os seus, ocorrerá aos nossos filhos com os nossos netos (quero tanto assistir de camarote!).

Parece ser inevitável. Mas não tem de ser insuportável nem surdo. Podemos tentar sair da nossa armadura fossilizada e procurar ouvir melhor e entender mais a diferença que os nossos filhos hasteiam como bandeira para a sua forma de estar.

E temos de ser nós, a fazê‑lo, ou pelo menos, a dar o primeiro passo, a estender a mão e a disponibilidade do nosso ouvido. Se vamos esperar serem eles a começar, nem daqui à geração seguinte nos safamos! É preciso um esforço extra para se chegar a um bom fim. Ou seja, um X para se chegar a Z.

 

 

Anatomia do abraço

Foto de Anna Shvets no Pexels

Não se vive sem um bom abraço. Ou pelo menos, viver custa mais.

Não é à toa que me despeço quase sempre dos leitores, que têm a gentileza de me deixarem os seus comentários, com um abraço. Sei bem que não lhes posso oferecê-lo senão virtualmente, mas o que formulo é o desejo sincero que o recebam, não necessariamente o meu, mas aquele abraço que lhes faz mais falta, seja o bálsamo que serena onde dói mais, seja a celebração que os deixa mais felizes.

Porque um abraço é tudo de bom. E o que é mais encantador no abraço, quanto a mim, é que nele podemos ser ora os emissores, ora os receptores, ou até ambos ao mesmo tempo.

Todos sabemos como um bom abraço pode ser remédio santo. É panaceia garantida para uma série de maleitas, desde o cansaço agudo às saudades mais graves.

Mas não se pense que os abraços são todos iguais, nem que servem todos os mesmos fins.

Há, com certeza, os abraços genéricos, mas são apenas um pequeno cumprimento que se administra sem muito cuidado, e que se recebe em modo anti‑inflamatório ligeiro. E com os anti‑inflamatórios, nunca se sabe: às vezes uma dose é suficiente, outras nem chegam a surtir efeito.

Para condições mais particulares, esse tratamento tópico não basta, são necessários abraços mais específicos.

Por exemplo, o abraço‑envelope (também apelidado de abraço‑cobertor), que abriga o destinatário envolvendo‑o por completo, como um envelope que o sela, ou como um cobertor que aconchega. O abraçado pode repousar a cabeça num ombro ou no peito, rodeando, por sua vez, a cintura do abraçador com os seus braços. Este é um abraço muito indicado em crises de adolescência, corações partidos generalizados, e, particularmente em situações de dor profunda por luto – mas neste último caso só é aconselhável se o abraçador já tiver experienciado por si próprio a sintomatologia da partida de um ente amado, pois de contrário poderá não saber aplicar com rigor a pressão certa pelo tempo adequado, nem a dose correcta de ternura a dispensar.

Há também a particularidade do abraço‑cruzado, no qual os braços ficam um por cima e outro por baixo. Este é o abraço que geralmente é aplicado após um longo período de ausência ou de distanciamento entre os dois interlocutores. O efeito é cruzado e bidireccional, porque o sintoma de saudade pós-traumática tem de ser mitigado nos dois sentidos. Há que abraçar e ser abraçado, para que o alívio da dor seja alcançado e os efeitos sejam duradouros.

Não é indiferente se os braços dos interlocutores estão por cima ou por baixo. Quando abraçamos alguém pelos ombros, para além do efeito aconchego, há também o efeito acolhimento, as boas‑vindas que damos a quem queremos bem. Se queremos celebrar o outro, por um sucesso alcançado, ou por cumplicidade com a sua ocasional alegria, tendemos a abraçá-lo por baixo dos seus braços, como se erguêssemos o afecto e o bem que lhe desejamos, à laia de trofeu.

Mas há uma ressalva que é imprescindível fazer. Os abraços só são autênticos se forem administrados de olhos fechados. Só de olhos fechados podem realmente surtir o efeito desejado. Porque tudo o que é sublime e promove felicidade usufruímos de olhos fechados, como um beijo apaixonado, uma iguaria deliciosa, ou uma música que nos enche a alma. Um bom e verdadeiro abraço não é diferente. Se assim não forem, não são abraços de verdade, mas uma espécie de sucedâneos de circunstância, restringidos por um qualquer protocolo, e que não oferecem nem conforto nem afecto. Coíbam-se de os dar e esquivem-se de os receber!

Porque, afinal, um abraço é o que nos une, desde sempre e para sempre: desde o nascimento, quando somos logo envolvidos no cálido entorno de quem mais nos ama e tanto esperou pela nossa chegada; até à morte, onde a memória do último abraço consola a nossa eterna saudade.

O abraço é o que nos faz sentir livres e seguros na mesma medida, porque nele o amor flui de uma pele para a outra, de um batimento cardíaco para o outro.

Por isso, abracem, que melhor remédio não há. Abracem muito, tanto quanto precisem, tanto quanto possam. Dêem o vosso e recebam o que vos é dado, com a mesma intensidade.

Ah, e caso estejam a perguntar‑se, o meu abraço de eleição é o que é dado ao mesmo tempo, sem receita, sem hora marcada, nem dose recomendada. Cura‑me tudo!

E vocês, qual é o vosso abraço preferido?

 

Anatomia do abraço [Reel]

 

Serendipidade

Serendipidade.jpg

«Isto tem de ter uma razão qualquer» – pensamos amiúde.

É tão difícil acreditar em coincidências. É tão difícil deixarmos momentos especiais, significativos, entregues apenas ao mérito do acaso. Achamos sempre que não, que não pode ser, isto teve uma razão para acontecer.

Mas, e se não a houver? E se tudo não passar de caos?

Caos? Não. Não cremos nisso. Não queremos isso! Queremos o universo a dar sinais, o destino a cumprir‑se.

«O meu caminho a cruzar‑se, inadvertidamente, com o teu. O meu olhar absorto a repousar no teu, distraído.» Atentos a partir daí. Conexos. A necessidade vital, que se gera doravante, de contacto. «Pode lá isto ser coincidência!» – cremos.

Mas, e se for? E se não for mais do que isto?

E se não for mais do que vontade de acreditar que é mais? Que se o destino nos une por vontade pré‑escrita, nada do que façamos estará, de facto, errado. É categórico – tinha de acontecer, estava escrito.

Grande demais para caber só no fortuito!

Mesmo que não resulte – era um caminho que tínhamos de percorrer, era uma dor que tínhamos de aprender. E assim, há menos margem para o arrependimento, e a culpa fica mais fácil de resolver – foi o que teve de ser.

Mas, e se não foi? E se pudesse nunca ter sido?

E se o que vivemos pudesse facilmente ter acontecido com qualquer outra pessoa?

O que somos, afinal, no amor? Destino ou apenas uma serendipidade qualquer?

 

Serendipidade 

nome feminino
1. aptidão de atrair a si acontecimentos favoráveis de maneira fortuita; dom de fazer boas descobertas por acaso
2. acontecimento favorável que se produz de maneira fortuita; acaso feliz; descoberta acidental

 

Serendipidade [Reel]

 

 

 

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