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Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

Azia

[crónica narrativa]

Foto de Polina Zimmerman no Pexels

Hoje não tenho tranquilidade. Sinto um familiar desassossego que às vezes surge e se atravessa na garganta como uma espinha.

Já sei quem ele é. O velho e bom rancor, que bem conheço, mas ao qual não costumo dar muita confiança. Aparece de quando em vez, como quem não quer nada. É um manhoso. E um abusado, não tem maneiras, chega e ocupa o espaço todo. Se o deixarmos, nunca mais se vai embora.

É feito daquela agrura azeda que não chega a amargura acabrunhada − que essa, mal ou bem, ainda conserva alguma romântica poesia. Não, este travo na boca não tem a profundidade da tristeza ou da dor.

Não passa de azedume rançoso, de azia maldisposta, que não tolera ver ninguém bem. E hoje tudo parece estar bem, para infortúnio do meu esófago.

O ar cheira a tépida beatitude e isso ofende-me o olfacto. Hoje há risos, palavras bonitas e acolhedoras, a tingirem de colorida benevolência o ambiente à minha volta. Irritam-me até à úlcera!

Os amigos dão-se as mãos em galhardos elogios, e estreitam mais um pouco os laços que trazem nos abraços.

Os velhotes cumprimentam-se e acertam o relógio pela cavaqueira do dia.

Os vizinhos sorriem e dão uma ajuda nas tarefas rotineiras, que se tornam mais leves.

Os cães latem, os pássaros chilreiam, e os gatos espreguiçam-se ao sol, indiferentes a todos.

As crianças pequenas aprendem a andar pela mão da avó, e as maiores vão para a escola pela mão do avô.

Tudo parece estar no seu sítio devido e o mundo parece ter hoje mais vontade de viver.

A esta visão de contentamento generalizado, a testa franze-se-me, o coração empedernia-se-me, e o estômago contrai-se-me.

Já sei. Azia. Já lá vou tomar o antiácido...

Só vou ficar aqui à janela mais uns minutos, a ruminar a sorte alheia, enquanto aperto e consolo o meu negro coração. Porque hão-de os outros ser felizes e eu não?

 

Azia [Reel]

 

Obrigada a Todos!

Homepage Sapo.jpg

Mais Lidos Estrelato.jpg

Nas últimas horas, a crónica «Estrelato» esteve na homepage do Sapo Blogs e foi uma das mais lidas.

Agradeço muito à fantástica equipa do Sapo Blogs.

Agradeço muito a todos os magníficos leitores e seguidores.

Espero que o vosso fim-de-semana esteja a ser tão incrível como o meu!

Muito obrigada a Todos!

 

O monstro cá dentro

Foto de cottonbro studio no Pexels

Às vezes parece-me que temos todos o mesmo rosto, que nada nas feições de todos os seres humanos realmente se distingue. Não importa se uns são altos e outros magros, uns têm olhos verdes e outros são ruivos. Parece-me que, pelo menos num instantâneo vislumbre, todos os nossos característicos traços se fundem numa amalgamada similitude.

Se calhar, até somos mesmo todos assim, indistintos e vulgares, mas seguimos no mundo achando-nos únicos e originais...

Mas esta ideia de democrática aparência até nos poderia ser aprazível, e fazer-nos sentir confortáveis nesta imensa pele humana toda justamente igual.

Os detestáveis preconceitos, todos os que nascem à flor da pele, deixariam automaticamente de terem essa estúpida razão de existir.

A justiça seria porventura mais inteligível e a paridade mais eficazmente garantida.

Tudo correria hipoteticamente bem – até encontrarmos os monstros e nos vermos reflectidos nos seus rostos.

Não, os monstros não são como nós. Os terroristas, os assassinos, os ladrões sem escrúpulos, os violadores, os impostores, os agressores – não têm nada a ver connosco, e nós não podemos ter nada em comum com eles.

Eles circulam no meio de nós, todos o sabemos. Mas não são como nós e a diferença é (tem de ser!) óbvia, jamais se poderiam confundir connosco.

Precisamos impreterivelmente da diferença, para sermos melhores, para sabermos que somos melhores. Para tranquilizar as nossas consciências e dormirmos descansados à noite.

Sem despertarmos o monstro cá dentro.

 

O monstro cá dentro [Reel]

Estrelato

Famous2.jpg

Ultimamente, tenho-me entretido a ver documentários e filmes sobre a vida de artistas famosos. Não porque tenha mais interesse na realidade do que na ficção, mas porque a primeira parece sempre mais absurda que a segunda. E tudo parece ainda mais fantástico quando vemos um documentário sobre a vida do David Bowie ou uma bio-pic do Elton John, por exemplo. Há algo de ternamente confrangedor nos primórdios um tanto ou quanto totós e até sem noção destas pessoas que nos preenchem o imaginário cultural.

Contudo, os seus percursos, com algumas variantes, acabam por se fundirem uns nos outros. Na sua maioria, estas estrelas desde cedo sabiam o que queriam fazer, pelo que descobrir como fazê-lo com sucesso foi só uma questão de tempo. Tendo em conta, claro está, o seu manifesto talento.

Inspiram-me e desinspiram-me em igual medida. Sinto um vazio, uma certeza fria e incómoda de que já vou tarde, porque tarde descobri a minha verdadeira identidade.

Há dúzias de exemplos, eu sei!, de gente que começou tarde – que floresceu para a sua vocação depois de já ter calcorreado muitos e diferentes caminhos nas suas vidas, ou até depois de ter passado anos no mesmo sítio presa numa frustrante insatisfação.

Mas quão tarde é tarde demais? (Eu sei que já escrevi sobre isso, mas acho que a catarse não ficou bem feita, porque sinto que não esgotei o tópico...aguentem...)

É preciso ser jovem para começar uma carreira de sucesso? Ou só é preciso talento – que pode começar a ser notado ou ser descoberto só mais tarde?

Ou será que é fundamental que o talento sempre lá tenha estado, ainda que nunca tenha sido identificado, e por isso passou sempre despercebido, nunca tendo sido realmente considerado como hipótese viável de carreira? Ou será que nada disto é relevante?

Qual é afinal o segredo para o sucesso? Qual é a chave-mestra para o estrelato?

Há quem o alcance por tentativa-erro irredutível e incansável. Há quem se limite apenas a ser descoberto. Há quem já tenha esse destino traçado nas veias do seu talento precoce. Há quem trabalhe intensivamente durante décadas e só o atinja quando se sentia já com vontade de desistir.

Seja como for, não podemos todos ser estrelas! Como saber quando parar de esperar por algo que já não há tempo natural suficiente para que aconteça?

Como saber tomar o pulso ao sonho? Como saber reconhecer a sua debilidade e deixá-lo cair?

Muitos de vocês que me lêem agora também escrevem (aqui ou algures), e, possivelmente, acalentam (como eu, confesso) o mesmo sonho: viver da escrita, ter a derradeira validação do talento confirmada na conta bancária!

Não é tanto, como o meu pomposo título indica, o conseguir ser famoso: na verdade, é mais conseguir auferir rendimento suficiente para sustentar o que é indispensável ao corpo tanto quanto o que é irrefutável à alma.

Mas sabemos, de antemão, que mesmo os escritores mais bem-sucedidos em Portugal, têm de fazer mais pela vidinha: daí os cursos de escrita criativa a rodos, aulas universitárias (para os que têm CV para tal), dúzias de artigos, crónicas e micro-contos, publicados regularmente na imprensa. E estes são os afortunados! Os abençoados – que vivem do rendimento exclusivo dos seus best-selllers, – são raros, como todos sabemos. Nem tenho bem a certeza se esta espécie é autóctone em Portugal...

Seremos todos raros? É certo que não. Mesmo que muitos haja com o potencial, poucos conseguem lá chegar. Chegarmos a afortunados seria já bem melhor que o tesouro da Sierra Madre...

Mas e se formos menos que isso? E se não tivermos sequer a hipótese real de o virmos a descobrir?

Não há uma resposta satisfatória – eu, pelo menos, não a tenho. Se alguém a tiver, por favor, avance e partilhe-a, seremos muitos, com certeza, os gratos interessados em conhecê-la!

A única indicação que me serve de guia é simplesmente não desistir. Não porque há esperança. Não porque o futuro é incognoscível e, virtualmente, tudo é possível, ainda que improvável.

Apenas porque escrever é um fim em si mesmo. Porque é a minha condição sine qua non de vida. Porque sem escrever, não sou. Porque sem escrever, não me interessa viver. E agora que comecei, não vou parar.

Por isso, a cada pessoa que me lê, seja onde for e o que for (consultem o meu [...tosse de falsa modéstia...] multifacetado perfil, sff), mesmo que não o manifeste, mesmo que até possa não concordar ou sequer gostar do que leu – a cada leitor eu estou grata.

Temo-nos uns aos outros, os que lemos e os que escrevemos, em diagramas de Venn mais do que sobrepostos, unidos. Aqui, eu creio que sou uma estrela. Porque há dúzias delas a luzir à minha volta.

 

Estrelato [Reel]

 

 

 

Só mais uma data

[crónica narrativa]

Só mais um dia.jpg

Já fui de fazer tudo e mais um pouco, todos os natais. Tantas vezes, tantos anos.

Dispus as meias (compradas nos chineses) na lareira, que ficaram sem serventia lógica quando nos mudámos para uma casa com aquecimento central.

Pendurei o calendário do advento na parede. Coloquei velas junto aos retratos dos finados e dentro do castiçal do pai natal de loiça (dos... chineses). Trepei a cadeiras e escadotes, esmifrei-me e estiquei-me ao ponto da contractura para enfeitar a casa toda, até nos recantos onde nunca ninguém vai e ninguém repara.

Cozinhei o banquete, dos acepipes aos pratos principais (sempre mais do que um, para agradar a gregos e a vegetarianos), das sobremesas mais modernas às mais tradicionais e incontornáveis.

Cumpri as tradições de outros antes de mim, honrei-os e dei-lhes destaque numa toalha de mesa herdada, numa iguaria que gostavam, numa música de fundo que preferiam.

Embrulhei os presentes (mal), escondi-os dos pequenos ávidos olhos, e dos olhos não tão pequenos mas igualmente ávidos, até ser altura de os colocar secretamente sob o pinheiro - o secretismo dessa tarefa decrescendo à medida que os pequenos se faziam maiores e menos crentes na magia do senhor do trenó. Esperei, inflexível, pela meia-noite, segurando com rédea curta as ânsias dos menos pacientes, miúdos e graúdos, antes e depois da Era-Pai Natal.

Fiz de um tudo. Ninguém pode, em boa consciência, dizer o contrário. E fi-lo sem um queixume, além de um costumeiro “chiça, que me queimei!”, ou de um eventual “porra, parti a estrela do topo do pinheiro!”, ou ainda de um proverbial “rais partam as luzes que ficam sempre emaranhadas, não há como deslindar esta treta!” – mas quem nunca?

Fiz tudo o que podia. O que devia. O que era suposto. O que se esperava. E talvez mais além do esperado.

Ainda que o meu coração estivesse moribundo e a cabeça longe de tudo e todos. O espírito natalício abandonou-me há anos, tantos que perdi a conta, e nunca encontrou o seu caminho de regresso. O corpo foi cumprindo os requisitos da quadra, mas a alma não o acompanhou. A alma permaneceu ausente.

Fiz de tudo. Não faço mais. Agora deixo o corpo junto da alma, a descansar, por fim uníssonos.

Agora, o Natal é só mais uma data.

 

 

 

Quem ri por último

[crónica narrativa]

Foto: Belle Co

Ninguém me testemunhou, ninguém me presenciou, ninguém me viu.

Ninguém sabe como fui do ponto A ao B, nem o que ganhei e perdi pelo meio, nem no que me tornei quando cheguei.

Falta de interesse ou distracção? Não sei dizer. Sei que se fosse um programa de televisão, já tinha sido cancelado por falta de audiência.

Custa-me pensar que posso ser assim tão invisível, que posso chegar ao fim do meu último dia nesta Terra sem que ninguém saiba nada sobre mim, nem sequer dê pela minha falta.

Avanço, ainda assim, um dia após o outro, empregando os meus melhores esforços naquilo que acredito – ainda que seja só eu sozinha a acreditar.

Sei que não é um caminho fácil de palmilhar, este que eu escolhi. Há muitas pedras bicudas, areia grosseira e pauzinhos cheios de espinhos, e eu pareço caminhar sempre de sandálias!

É ainda mais rude de percorrer quando não há uma plateia a encorajar-me os passos, não há uma pit stop que seja, para me acolher e renovar o alento. E as sandálias.

Olho em volta, nos dias mais cansados, e não encontro um olhar disposto a cruzar-se com o meu.

Talvez pensem que sou invulnerável e determinada, tanto que não careço de apoio. Talvez pensem que o que persigo é só parvo, e prefiram entregar a sua atenção a objectivos de pessoas menos absurdas.

Seja como for, não me detenho.

Hei-de chegar ao fim. Hei-de conseguir aproximar-me do horizonte e vencer a ilusão de óptica, vendo o que se esconde para além dele.

Hei-de rir, no fim. Eu sei que sim.

Só não sei se hei-de rir melhor. Temo bem que quem ri por último, apenas ri sozinho.

 

 

 

Onde mora a virtude

Onde mora a virtude.jpg

Gostamos de pensar que nunca é tarde para nada, que vamos sempre a tempo de tudo. Mas sabemos bem que é uma mentira piedosa que repetimos em loop nas nossas mentes, para nos sossegarmos, para não desesperarmos, para sentirmos que estamos em pleno controlo do nosso destino, e que podemos mudar o curso a qualquer altura, quando muito bem nos apetecer.

Não é essa a verdade. Não podemos. Não tudo, pelo menos. Haverá um momento em que será tarde demais.

É claro que esta é uma assunção generalizada. Há muitas pessoas que mudam não só a rota mas todo o destino final, em idades bem avançadas. Mas a maior parte das pessoas não o será capaz de fazer. A saúde poderá falhar-lhes, senão mesmo as forças de que se alimenta a coragem.

Assim, é vulgar pensar que aos 50 anos experimentamos uma espécie de última juventude.

É a última década em que faz ainda sentido recomeçarmos tudo ou fazermos tudo pela primeira vez, pela última vez.

Não quer dizer que não se aprenda, não se viva e não se exista com entusiasmo aos 60 ou 70, ou mais além. Mas a proximidade do fim inevitável torna qualquer tentativa de inovação muito mais desesperante. Se não mesmo desesperada...

Aos 50 ainda assim não é. Não há o peso da finitude a rondar-nos a porta do pessimismo fatalista – ainda somos meninos para a mantermos firmemente fechada.

Há apenas o optimismo jovialmente amadurecido de quem decide que o que vai viver, doravante, serão escolhas mais conscientes e mais determinadas, e até determinantes.

É a última etapa de um percurso, que já estava calculado, onde ainda é possível arregaçar as mangas, agarrar no leme e mudar a rota por completo.

Virar o leme e inverter a marcha ao navio que somos aos 50 não é tarefa fácil, e exige o esforço e o fôlego que os anos seguintes poderão já não ser totalmente capazes de produzir. E isto, só por si, é capaz de ser gerador de muita angústia: recomeçar agora implica a pressa necessária de se obterem bons resultados mais cedo, mais depressa, para que haja ainda tempo de desfrutar dos louros em boa forma, física e mental.

Há quem chame a esta resoluta decisão crise de meia-idade - o tal apito agudo do último combóio para o destino que poderia ainda ser, a silvar-nos aos ouvidos.

(Talvez esta designação provenha apenas do cinismo habitual dos apupadores de plateia, cuja falta de coragem endémica os impossibilita de tomarem resoluções semelhantes. Mas a já sábia meia-idade confere-nos a noção de que há pateadas que vale a pena ignorar...)

A meio caminho entre o que se foi e o que se será, repousa inquieta uma vontade há muito fechada a sete chaves, porém secretamente acalentada: “e se...?”.

Para os que sentem que é o último sopro de juventude a insuflar-lhes os pulmões de audácia, é a última hipótese de realmente cobrarem a promessa e realizarem o sonho – enquanto há vida pela frente.

Quem toma esta resolução não o faz de ânimo leve nem apenas por impulso leviano. Para coçar essa comichão caprichosa bastaria comprar um carro desportivo ou saltar de pára-quedas.

Não é de caprichos nem de veleidades que se trata. É de um profundo sentimento de se querer viver como nunca se fez até agora – deixando aquela verdade, que sempre residiu oculta no nosso íntimo, passar a viver à flor da pele.

Não raro são incompreendidos. Porquê isso agora? Para quê deixarem tanto para trás, e desatarem a correr, aparentemente para nenhures?

Não é para colmatar defeitos, nem falhas, nem imperfeições, num súbito ataque de virtuosidade. É simples e complicadamente, ao mesmo tempo, para Viver. Ou morrer tentando-o. E se assim tiver de ser, se o seu intento apenas encontrar como destino o rotundo fracasso na metade de vida seguinte, daqui a um veloz piscar de olhos portanto, sabem que exalarão o último suspiro em paz: “pelo menos, tentei”! E só por isso a vida toda já valeu a pena.

É melhor começar a tentar mais cedo do que mais tarde, claro. Mas é melhor mais tarde do que nunca. A meio é também tempo, é também vida. E o meio da vida de cada um, só cada um sabe onde fica ao certo: algures entre um passado cinzento e um futuro mais brilhante.

Dizem que é onde mora a virtude...

 

O Tempo não conta

Emi Pinto

 

Ninguém, como os pais, sabe como o Tempo não conta.

Ninguém como nós é capaz de perceber a imutabilidade tranquila do Tempo. Ainda que, concomitantemente, o vejamos a passar célere como um relâmpago, a escapar-se por entre os dedos como areia fina.

Mas sabemos que o Tempo não conta, não é nada, é só uma ilusão, um marco compassado no calendário, um débil sopro de vento nos cabelos da eternidade.

Eles cresceram, mas não mudaram.

Os olhos são os mesmos, o sorriso, os medos, as alegrias, as derrotas e as vitórias, os passos e as hesitações, a coragem, nada mudou.

O Tempo não passa de uma intrincada ilusão de óptica.

Pois se eles continuam a caber direitinhos, sem tirar nem pôr, no nosso colo como no nosso coração.


O tóxico em mim

Emi Pinto

 

Vivemos no arrepiar-caminho dos dias, horas contadas, ócio distribuído meticulosamente no calendário. Não temos tempo livre para muito mais, menos ainda para nos embrenharmos em pensamentos mais aprofundados sobre culpas e culpados, acerca de tudo o que nos aconteceu de menos positivo nas nossas existências.

É mais cómodo, por isso, dispensarmos uma fracção do nosso tempo para as análises fáceis e prêt-à-porter das I.A. – leia-se inteligências anedóticas – de auto-ajuda e mantras que ficam no ouvido, e assim vamos absorvendo, sem darmos por isso, o discurso da “culpa é sempre do outro”. Mas será mesmo?

Note-se, não há mal nenhum em cuidarmos de nós, em adoptarmos condutas cautelosas, em resguardarmo-nos de quem nos incomoda. Agora mesmo, se fizermos esse exercício, seremos capazes de pensar em uma ou duas pessoas de quem nos afastámos ou de quem estamos a fazê−lo.

Mas será que, por vezes, o tóxico não mora cá dentro?

Seremos capazes de nos auto-analisar com honestidade? Seremos capazes de identificar a toxicidade que carregamos? Quão fundo conseguimos olhar no espelho? Será que o tóxico é mesmo sempre o outro? Seremos capazes de reconhecer o tóxico em nós?

Olharmo-nos com sinceridade requer coragem. E honestidade moral, claro, mas acima de tudo coragem. Porque o que viermos a descobrir sobre nós mesmos poderá deitar por terra o conceito que temos sobre o que somos. É um espelho que corremos o risco de estilhaçar, e que, por muito que o tentemos consertar, nunca mais reflectirá a nossa imagem daquela maneira.

Isto é tanto mais difícil quando sobrevivemos a contextos de relacionamentos com pessoas que foram, por inquestionável definição, tóxicas: negligentes ou abusivas, senão mesmo agressoras.

Levou-nos tempo a cicatrizar as feridas e a reconstruir o puzzle desfeito da nossa identidade – eventualmente com algumas peças em falta para sempre. Olharmo-nos ‘lá’ por dentro agora, tipo scanner do Terminator, à procura de falhas e defeitos a abater, pode comprometer a integridade geral de um ego que tanto custou a recuperar. Sob o risco de tudo se desmoronar novamente, e sem hipótese de recuperação, desta feita.

No mínimo, em vez de esgravatar até ao âmago, preferimos apenas sacudir as migalhas e as poeiras mais grossas das nossas imperfeições da superfície da nossa personalidade, e continuarmos a viver. No máximo, ostentamos ao peito os defeitos subsequentes como medalhas que ganhámos nas batalhas sangrentas de um atribulado passado, as quais sentimos ter o direito incontestável de exibir. E quem quiser, que lide.

Consideramos que tudo o que passámos nos tornou especialistas na matéria, que somos capazes de reconhecer um ser tóxico até pelo recorte da sua sombra. Mas não reconhecemos o tóxico que nos olha todos os dias desde o espelho.

É uma bomba-relógio que levamos dentro, mas que, em vez de explodir e devastar tudo à volta de uma vez, vai libertando o seu veneno em golfadas cíclicas e precisas. Manifesta-se em elogios que o não são de facto, em promessas que não tencionamos cumprir, no interesse desatento que prestamos, ou, pior ainda, no cultivo de atenções que semeamos no quintal da nossa vaidade, mas às quais apenas fingimos corresponder.

Assim, tornamo-nos capazes, sem nos apercebermos, de boicotar a felicidade alheia, de minar a confiança dos que aliciamos a aproximarem-se, ao oferecer-lhes primeiro uma mão amiga e um ombro à laia de porto-seguro, para logo depois os deixarmos cair no vazio silencioso da nossa indiferença súbita.

E porque não estamos verdadeiramente preparados para dar, fingimos que oferecemos. Porque achamos que somos donos da verdade no que toca a sobreviver à dor imposta. Porque, apesar de até nos apetecer, receamos atribuir novamente um estatuto de importância a alguém nas nossas vidas, que potencialmente o poderá defraudar mais além. Porque nos convencemos que o nosso percurso será menos atribulado se não dispersarmos a nossa energia e atenção dando-as levianamente a outros.

Porque na nossa cabeça cabe apenas uma sentença: se eu sobrevivi, os outros que o façam também!

O que não nos cabe dentro do nosso duro crânio é que sobreviver não é o mesmo que viver. Exortar as dores passadas metamorfoseadas de forças presentes é uma falácia cruel que nos contamina desde dentro como um cancro lento mas irredutível.

O sofrimento que tivemos não nos tornou especialistas na matéria, nem tão-pouco nos isenta da capacidade de fazermos os outros sofrer também. E muito menos nos confere impunidade se o fizermos.

Tal como alguns foram culpados do sofrimento deliberado que me causaram, eu sou inequivocamente culpada do sofrimento que causei a outros, deliberadamente ou não.

O que nos falta, dizia, é coragem e honestidade para nos analisarmos em profundidade, e para percebermos que ninguém se cura sozinho. A reconstrução emocional autónoma (que não dispensa o acompanhamento psicológico profissional) é um trabalho em duas partes: a interior, pela auto-análise, e a exterior, pelo contacto sincero com o outro - permitirmo-nos o risco de conhecer o outro, de o deixarmos conhecer-nos, de lhe prestarmos auxílio, de consentirmos que nos auxilie. Mesmo sabendo que há o risco da decepção.

A toxicidade que nos infligiram circula livre nas nossas veias e isso não nos torna mais fortes, nem mais lúcidos, nem mais hábeis. Apenas mais sós.

Dotarmo-nos de fria implacabilidade e atitude calculista não nos torna inexpugnáveis: é justamente o oposto, tornamo-nos mais fracos desde dentro, com o tóxico (agora em nós) ainda no comando.

 

Escolher Ser

Foto de Damla Karaağaçlı no Pexels

Hoje olhei para a minha filha adolescente, e pensei “está a viver o que tem de viver, uma vida toda, entusiasmante, à frente dela, nova em folha, pronta a explorar!”

Lembrei-me de mim com a sua idade (e nos anos subsequentes), em que a juventude significava possibilidades abertas e destino traçado, tudo junto, ao mesmo tempo. Emocionei-me, e não há como sermos pais e não o fazer, não o sentir.

Percebi que o destino que ela quiser percorrer é seu, e o meu papel é fornecer-lhe o benefício da minha experiência, se dela ela escolher usufruir. E só. O que somos, a partir de um certo ponto de independência após o corte umbilical, é escolha nossa. Ela terá a dela. Todos temos a nossa.

Lutamos todos os dias pelo que achamos ser o nosso dever lutar.  Porque nos disseram – quem? Quando? Onde? – que era nosso dever lutar. Fazer menos era ser menos. Fazer diferente era ser diferente. Ninguém quer ser menos ou diferente.

Mas... o que significam este “menos”, este “diferente”? Significa querer outra coisa? Significa ser outra coisa? E isto, querer outra coisa, querer ser diferente, é forçosamente mau? Não. Não é.

Esqueçam os memes. Esqueçam os vídeos. Esqueçam as teorias da conspiração. Esqueçam as terapias self-care. Esqueçam tudo.

Ninguém nunca chega a lado algum, se não for honesto consigo mesmo, se não tiver um momento sincero para inspirar fundo, e olhar para o âmago de si próprio. E não há médico, terapeuta, guru, vendedor da banha da cobra, amigo, parente, cônjuge, colega, não há ninguém que possa fazer isso por nós, nem de nos levar, pela mãozinha, a fazê-lo.

Olha para ti. Se necessário for, despe-te frente a um espelho. O que és, o que sentes, o que de facto queres, está tudo aí.

Se falta fizer, procura a ajuda onde sentires que ela está; porém, examina-a, quando a encontrares, mede-a, pesa-a, avalia-a, verifica se é de facto aquilo que pensavas que obterias. Não faz mal se não for, mas não te contentes com sucedâneos.

Continua. Persiste. Lê, observa, contempla, escuta, analisa, avalia. Volta atrás as vezes que forem necessárias. Não se consegue tudo à primeira, consegue-se, contudo, ter um pouco mais a cada dia. Respirando, recuperando o fôlego nos intervalos.

Inspira. Ninguém sabe mais de ti do que tu.

Se há médico, terapeuta, amigo, cônjuge, parente que não te entende, porque não te escuta, fala mais alto, GRITA! Ou deixa-os a fazer o que fazem melhor, que é ouvirem apenas o som das suas vozes. Escolhe quem te ouça, ou segue, só.

Mas sabe que não estás só. Há muita gente a sentir o mesmo que tu, e a não saber também o que fazer com isso. E não faz mal. Podemos não saber tudo, podemos (ainda) não conseguir resolver nada. Mas há mais gente a sentir o mesmo. Não é preciso sentirmo-nos sós.

Contudo, estar só não é sempre mau. Às vezes, as que forem precisas, é mesmo imprescindível. Fica só quando a necessidade de assim estar for mais importante, para abafar o ruído da opinativa multidão à volta. A solidão desejada não é um degredo nem tem de ser permanente. É uma forma de obter o silêncio necessário para ouvir melhor a voz que temos dentro, que às vezes fala baixinho.

Nunca penses que és uma aberração só porque não há ninguém como tu. Não há ninguém como tu. O que há de fascinante num par de gémeos monozigóticos não é o que têm em comum – isso é notório e nada surpreendente – mas sim tudo aquilo que os distingue. Sê a especificidade única que és, e partilha-a com quem se interessa por partilhar, porque lhes interessa a honestidade de quem ousa ser o que é – ou pelo menos o tenta honestamente, todos os dias.

Todos os dias. Há dias que são de vitória, de alcance. Há dias que são de recuo. Nunca de derrota. Mesmo que ela te pareça decalcada no teu ADN – não está. Mesmo que te sintas a desistir, mesmo que apenas tenhas vontade de largar tudo, mesmo que penses que nada te resta senão atirar a amarrotada toalha ao chão, para deixar tudo para trás. Não deixes.

«Não se pode voltar atrás e fazer um novo começo, mas pode-se começar agora mesmo e fazer um novo final» - a frase, de James R. Sherman, publicada no livro “Rejection”, em 1982, é uma das mais reproduzidas, por essa internet afora. Apesar disso, é uma frase de que gosto muito, pelo que possibilita. Significa que não há redenção, mas há a hipótese de algo potencialmente melhor: há a esperança, há a mudança, há evolução. Porque há autodeterminação, há livre arbítrio, há escolha.

Sê o que escolhes ser. Sê o que sentes ser. Sê o que és.

Mudar, lutar, trabalhar, resistir, perseverar, desesperar, tropeçar, tombar, levantar-se de novo. Tudo fica mais leve e exequível quando sabes quem és. E quem és, o que és, é teu. O que tu decides que és ninguém tem o direito de negar. Conquanto não infrinjas a lei nem os direitos dos demais, está tudo bem!

Deixa as palavras dos outros, que nada têm a decidir sobre o que é intrinsecamente teu. Sê o teu próprio guru! E se houver mote ou lema de outrem que valha a pena seguir, que seja poesia. Eu tenho o meu.

«[...] És melhor do que tu.
Não digas nada; sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.
»

(Fernando Pessoa)

 

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