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Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

Azia

[crónica narrativa]

Foto de Polina Zimmerman no Pexels

Hoje não tenho tranquilidade. Sinto um familiar desassossego que às vezes surge e se atravessa na garganta como uma espinha.

Já sei quem ele é. O velho e bom rancor, que bem conheço, mas ao qual não costumo dar muita confiança. Aparece de quando em vez, como quem não quer nada. É um manhoso. E um abusado, não tem maneiras, chega e ocupa o espaço todo. Se o deixarmos, nunca mais se vai embora.

É feito daquela agrura azeda que não chega a amargura acabrunhada − que essa, mal ou bem, ainda conserva alguma romântica poesia. Não, este travo na boca não tem a profundidade da tristeza ou da dor.

Não passa de azedume rançoso, de azia maldisposta, que não tolera ver ninguém bem. E hoje tudo parece estar bem, para infortúnio do meu esófago.

O ar cheira a tépida beatitude e isso ofende-me o olfacto. Hoje há risos, palavras bonitas e acolhedoras, a tingirem de colorida benevolência o ambiente à minha volta. Irritam-me até à úlcera!

Os amigos dão-se as mãos em galhardos elogios, e estreitam mais um pouco os laços que trazem nos abraços.

Os velhotes cumprimentam-se e acertam o relógio pela cavaqueira do dia.

Os vizinhos sorriem e dão uma ajuda nas tarefas rotineiras, que se tornam mais leves.

Os cães latem, os pássaros chilreiam, e os gatos espreguiçam-se ao sol, indiferentes a todos.

As crianças pequenas aprendem a andar pela mão da avó, e as maiores vão para a escola pela mão do avô.

Tudo parece estar no seu sítio devido e o mundo parece ter hoje mais vontade de viver.

A esta visão de contentamento generalizado, a testa franze-se-me, o coração empedernia-se-me, e o estômago contrai-se-me.

Já sei. Azia. Já lá vou tomar o antiácido...

Só vou ficar aqui à janela mais uns minutos, a ruminar a sorte alheia, enquanto aperto e consolo o meu negro coração. Porque hão-de os outros ser felizes e eu não?

 

Azia [Reel]

 

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