Azia
[crónica narrativa]
Hoje não tenho tranquilidade. Sinto um familiar desassossego que às vezes surge e se atravessa na garganta como uma espinha.
Já sei quem ele é. O velho e bom rancor, que bem conheço, mas ao qual não costumo dar muita confiança. Aparece de quando em vez, como quem não quer nada. É um manhoso. E um abusado, não tem maneiras, chega e ocupa o espaço todo. Se o deixarmos, nunca mais se vai embora.
É feito daquela agrura azeda que não chega a amargura acabrunhada − que essa, mal ou bem, ainda conserva alguma romântica poesia. Não, este travo na boca não tem a profundidade da tristeza ou da dor.
Não passa de azedume rançoso, de azia maldisposta, que não tolera ver ninguém bem. E hoje tudo parece estar bem, para infortúnio do meu esófago.
O ar cheira a tépida beatitude e isso ofende-me o olfacto. Hoje há risos, palavras bonitas e acolhedoras, a tingirem de colorida benevolência o ambiente à minha volta. Irritam-me até à úlcera!
Os amigos dão-se as mãos em galhardos elogios, e estreitam mais um pouco os laços que trazem nos abraços.
Os velhotes cumprimentam-se e acertam o relógio pela cavaqueira do dia.
Os vizinhos sorriem e dão uma ajuda nas tarefas rotineiras, que se tornam mais leves.
Os cães latem, os pássaros chilreiam, e os gatos espreguiçam-se ao sol, indiferentes a todos.
As crianças pequenas aprendem a andar pela mão da avó, e as maiores vão para a escola pela mão do avô.
Tudo parece estar no seu sítio devido e o mundo parece ter hoje mais vontade de viver.
A esta visão de contentamento generalizado, a testa franze-se-me, o coração empedernia-se-me, e o estômago contrai-se-me.
Já sei. Azia. Já lá vou tomar o antiácido...
Só vou ficar aqui à janela mais uns minutos, a ruminar a sorte alheia, enquanto aperto e consolo o meu negro coração. Porque hão-de os outros ser felizes e eu não?