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Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

Onde mora a virtude

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Gostamos de pensar que nunca é tarde para nada, que vamos sempre a tempo de tudo. Mas sabemos bem que é uma mentira piedosa que repetimos em loop nas nossas mentes, para nos sossegarmos, para não desesperarmos, para sentirmos que estamos em pleno controlo do nosso destino, e que podemos mudar o curso a qualquer altura, quando muito bem nos apetecer.

Não é essa a verdade. Não podemos. Não tudo, pelo menos. Haverá um momento em que será tarde demais.

É claro que esta é uma assunção generalizada. Há muitas pessoas que mudam não só a rota mas todo o destino final, em idades bem avançadas. Mas a maior parte das pessoas não o será capaz de fazer. A saúde poderá falhar-lhes, senão mesmo as forças de que se alimenta a coragem.

Assim, é vulgar pensar que aos 50 anos experimentamos uma espécie de última juventude.

É a última década em que faz ainda sentido recomeçarmos tudo ou fazermos tudo pela primeira vez, pela última vez.

Não quer dizer que não se aprenda, não se viva e não se exista com entusiasmo aos 60 ou 70, ou mais além. Mas a proximidade do fim inevitável torna qualquer tentativa de inovação muito mais desesperante. Senão mesmo desesperada...

Aos 50 ainda assim não é. Não há o peso da finitude a rondar-nos a porta do pessimismo fatalista – ainda somos meninos para a mantermos firmemente fechada.

Há apenas o optimismo jovialmente amadurecido de quem decide que o que vai viver, doravante, serão escolhas mais conscientes e mais determinadas, e até determinantes.

É a última etapa de um percurso, que já estava calculado, onde ainda é possível arregaçar as mangas, agarrar no leme e mudar a rota por completo.

Virar o leme e inverter a marcha ao navio que somos aos 50 não é tarefa fácil, e exige o esforço e o fôlego que os anos seguintes poderão já não ser totalmente capazes de produzir. E isto, só por si, é capaz de ser gerador de muita angústia: recomeçar agora implica a pressa necessária de se obterem bons resultados mais cedo, mais depressa, para que haja ainda tempo de desfrutar dos louros em boa forma, física e mental.

Há quem chame a esta resoluta decisão crise de meia-idade - o tal apito agudo do último combóio para o destino que poderia ainda ser, a silvar-nos aos ouvidos.

(Talvez esta designação provenha apenas do cinismo habitual dos apupadores de plateia, cuja falta de coragem endémica os impossibilita de tomarem resoluções semelhantes. Mas a já sábia meia-idade confere-nos a noção de que há pateadas que vale a pena ignorar...)

A meio caminho entre o que se foi e o que se será, repousa inquieta uma vontade há muito fechada a sete chaves, porém secretamente acalentada: “e se...?”.

Para os que sentem que é o último sopro de juventude a insuflar-lhes os pulmões de audácia, é a última hipótese de realmente cobrarem a promessa e realizarem o sonho – enquanto há vida pela frente.

Quem toma esta resolução não o faz de ânimo leve nem apenas por impulso leviano. Para coçar essa comichão caprichosa bastaria comprar um carro desportivo ou saltar de pára-quedas.

Não é de caprichos nem de veleidades que se trata. É de um profundo sentimento de se querer viver como nunca se fez até agora – deixando aquela verdade, que sempre residiu oculta no nosso íntimo, passar a viver à flor da pele.

Não raro são incompreendidos. Porquê isso agora? Para quê deixarem tanto para trás, e desatarem a correr, aparentemente para nenhures?

Não é para colmatar defeitos, nem falhas, nem imperfeições, num súbito ataque de virtuosidade. É simples e complicadamente, ao mesmo tempo, para Viver. Ou morrer tentando-o. E se assim tiver de ser, se o seu intento apenas encontrar como destino o rotundo fracasso na metade de vida seguinte, daqui a um veloz piscar de olhos portanto, sabem que exalarão o último suspiro em paz: “pelo menos, tentei”! E só por isso a vida toda já valeu a pena.

É melhor começar a tentar mais cedo do que mais tarde, claro. Mas é melhor mais tarde do que nunca. A meio é também tempo, é também vida. E o meio da vida de cada um, só cada um sabe onde fica ao certo: algures entre um passado cinzento e um futuro mais brilhante.

Dizem que é onde mora a virtude...

 

 

«Onde mora a virtude» reel

 

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