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Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

O suficiente

Foto de Shiny Diamond no Pexels

Às vezes tenho a nítida impressão que de quase tudo, hoje em dia, só queremos conhecer o mínimo e indispensável – apenas o suficiente já chega.

Parece que passamos pela vida como quem só lê as letras gordas da parangona mas nunca abre a página para ler a notícia completa.

Porque é que ninguém quer saber mais do que o suficiente? É receio da intromissão, é pavor do excesso, é apatia generalizada? É a pressa de irmos para outro sítio, é a urgência de termos outra coisa para fazer?

Até nos cumprimentos, ninguém quer realmente saber mais. Mesmo quando perguntam, esperam quase sempre que as respostas apenas atinjam o seu limite de satisfação básico. Num «olá como estás?», um «bem, obrigada!» é suficiente. Um «cá se vai andando!» também serve, embora se infira um bocadinho mais de informação do que o requerido, mas desde que a conversa não se alongue, não é grave.

Mas... e se alguém se atrever ao impensável, ao indizível, ao abominável, ao inominável? E se alguém quiser dizer mais? E se alguém quiser saber mais?

Não! Não se ultrapassem os limites do suficiente! Para quê? Que vantagens pode trazer isso ao mundo? Que bem fará seja a quem for?

Não. Não transponhamos essa fronteira sacrossanta que a todos agracia e a todos poupa tempo e possíveis contrariedades. O suficiente chega sempre muito bem.

Por isso, não falemos demais. Não conversemos por demasiado tempo.

Não prolonguemos o banho de imersão. Relaxemos o suficiente num duche funcional e rápido.

Não nos alonguemos para lá do pôr-do-sol num passeio. Não passeemos por mais tempo do que o necessário, pois há que voltar a casa, ainda que a vontade seja outra.

Não celebremos com demasiada euforia. Não bebamos a garrafa toda – e muito menos abramos outra! Nem cantemos a alegria muito alto.

Não prolonguemos o beijo para lá do momento do sexo. Não prolonguemos o sexo para lá do orgasmo! Não estendamos o orgasmo para lá do amor.

Não amemos... Não amemos mais do que é preciso. Afinal, a felicidade não precisa de existir (nem existe, de facto) todos os dias. Amar o suficiente, chega.

Não queiramos viver mais do que o que basta. Para quê chegar aos 100? Que vantagens há em querer viver mais?

Indigestão, coração partido, frustração, decadência, desamor e fim da paciência – eis o que nos espera quando esperamos mais do que o suficiente.

Para quê arriscar e ir além da conta certa? Para quê tentar ser (mais?) feliz?

 

 

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