Calar o cinismo
Não sei se me tornei cínica perante o mundo, ou se foi o mundo que me tornou cínica perante a vida. Dou por mim a tecer críticas mentalmente a quem comigo se cruza na rua, num café ou numa fila de supermercado, onde calha levar-me o quotidiano.
Critico acidamente a jovem que vejo caminhar descontraída e segura, de roupas justas, decote acentuado e umbigo descoberto.
Critico mentalmente a menina doce, com as suas meticulosas tranças, que, de mão dada à avó e mochila às costas, me sorri quando nos cruzamos de manhã – um sorriso sincero e lindo, onde cabe toda a inocência do mundo, ou talvez a que o mundo já perdeu.
Critico até o cãozinho que foge dos apelos e braços protectores da dona, para se entregar confiadamente aos afagos de uma desconhecida como eu – “qualquer dia levam-te...” critico entredentes enquanto lhe faço festas no pêlo fofo.
Critico não por arrogante paternalismo, não por qualquer moral ofendida. Critico a inocência, critico a confiabilidade, critico a ousadia da liberdade até – num mundo que não perdoa nenhuma delas, que não permite que existam sem cobrar um preço elevado, por vezes eternamente incomportável.
Porque não há-de a jovem usar decotes e as justezas de roupas que muito bem lhe aprouver? Porque há-de ter de ser ela a adaptar-se, tapando-se dos olhares cobiçadores dos homens prontos a assaltarem-na sexualmente nas suas mentes sórdidas, senão mesmo para lá delas?
Porque não há-de a criança sorrir, na sua maravilhosa e terna candura – só possível na infância! – às pessoas com quem se cruza, como se lhes desejasse um dia feliz? Porque há-de ela baixar o olhar e agarrar com mais força e temor a mão da avó, precavendo-se contra as possíveis ameaças nas intenções escondidas de cada desconhecido?
Porque não há-de o cão sacudir a sua alegria na cauda, saltar e pedir festas aos transeuntes, como se todos os seres humanos fossem dignos da atenção afectuosa da mais fiel das criaturas?
Porque não hão-de todos os justos, os inocentes, os seguros de si, os felizes e sorridentes, existir pacificamente e caminhar todos os seus dias em segurança, neste mundo?
Porque haveriam de sucumbir à premissa da cautela desconfiada a priori?
Porque haveriam de ouvir as minhas críticas e transformar o que de melhor têm em si, só para acomodarem a feiura do mundo?
Porque não pode a juventude sem pudores moralistas, a candura feliz e a confiança inata criticarem, por sua vez, o feio e espartilhante cinismo do mundo?
Podem. Podem pois. Mesmo que nada mude no mundo, e este continue feio e cínico.
Hoje não mudei nada. Mas amanhã mudo. Amanhã, vou deixar que vençam e calem o cinismo na minha mente. E vou sorrir-lhes também.