A normalização do medíocre
Uma das coisas que mais me desmoralizam e, até, entristecem, é ver a incompetência e a mediocridade a serem bem-sucedidas.
Constatar o sucesso de alguém a quem reconheço competência, talento, é revitalizante. É um exemplo a seguir, é um encorajamento à melhoria. Se calha de ser alguém que conhecemos da nossa área de actuação, a felicidade pelo êxito de outrem é celebrada ainda com mais gosto. E, claro, dá mais alento à fé de virmos também nós a conseguir alcançar esse patamar, um dia.
No entanto, no reverso perverso disto, ver pessoas ou organizações – ainda que as organizações não sejam mais do que as pessoas que lá trabalham – a terem um sucesso que não merecem, porque não são competentes o suficiente, deixa-me preocupada.
Porque bitola de qualidade andamos todos a reger-nos para que isto suceda, para que isto seja possível de suceder?
O que andamos todos a tolerar? Estaremos todos com os nossos recursos de análise crítica e capacidade de raciocínio tão dormentes, que o aceno brilhante de um letreiro oco é suficiente para nos deslumbrar?
Para quem se esforça para ser competente, para quem diariamente trabalha para inovar, para aprender, para ser melhor, para manter a sua identidade original sem ceder a modas maneiristas e passageiras, é duro não ver o seu trabalho florescer e dar mais frutos como deveria, como seria esperado, como foi acalentado.
Pensa-se “é o mercado, é a época do ano, é a dificuldade crescente dos problemas diários, há-de chegar uma ocasião mais favorável”. E não se desiste. Reinventa-se o que for necessário, trabalha-se com mais afinco, ou retrocede-se e reflecte-se mais um pouco, para regressar e construir projectos melhores.
Mas quando se olha para o lado – senão mesmo para baixo – e se vê aquele que, não lutou, não criou, não sabe o que faz, e o que faz é pobre e malfeito, ascender, ser aclamado, aplaudido... é, no mínimo, desanimador. Afinal, de que servem a dedicação, o esforço consistente, o brio em concretizar um trabalho digno de nota, o cuidado nos detalhes, se, no fim do dia, são os descuidados, os torpes, os de talento discutível, os de esforço mínimo ou quase nulo, que singram e recebem os destaques e os aplausos?
Não sou ingénua nem frágil, sei bem que o mundo gira assim há muito. Este tipo de realidade frustrante não é novidade. Não sou inocente nem nasci ontem.
Mas não deixo de me preocupar. Não deixo de pensar que todos temos uma certa “responsabilidade de grupo” ou “comunitária” para que isto aconteça.
Creio também que há uma razão estrutural (entre várias outras) que permite ou potencia que esta situação ocorra em modo mais ou menos contínuo: esta diminuição generalizada do poder de análise e do espírito crítico dos públicos resulta do desinvestimento crescente na educação e na cultura. E, porventura, também do próprio cansaço mental deste quotidiano excedentário em estímulos rápidos e deficitário em informação realmente útil.
Seja pelo que for, assistimos a um aumento das escolhas mediante um grau de satisfação mínima com o que é menos elaborado, menos trabalhado, menos inédito, mas de consumo mais célere. Ao ponto de, quando nos deparamos com alguém ou alguma organização – um conjunto de alguéns – efectivamente competente no que faz, acharmos isso extraordinário! Não é. Estamos é a ficar demasiado habituados ao medíocre, tão habituados que já é o novo normal.
Ora, o ponto onde a escala declina não deve nem pode tornar-se no novo limiar de exigência! Esta síndrome da fasquia baixa representa uma distorção cultural que nivela tudo por baixo. Acomodarmo-nos a estes padrões rasteiros representa um verdadeiro problema, pois permite o perpetuar de sistemas ineficientes, e a degradação da nossa qualidade de vida. Esta ideia pode parecer muito teórica, mas acontece já nas mais diversas dimensões da nossa realidade: arte, saúde, política, comércio, etc.
O risco é real. Se não aguçarmos mais o espírito crítico, se não sairmos da nossa (aparentemente cómoda) apatia, estaremos a contribuir cada vez mais para esta degradante normalização do medíocre, que acabará por engolir-nos a todos. Conseguiremos viver com isso?
[Imagem criada com recurso a IA]
«A normalização do medíocre» - Reel