Já fui de fazer tudo e mais um pouco, todos os natais. Tantas vezes, tantos anos.
Dispus as meias (compradas nos chineses) na lareira, que ficaram sem serventia lógica quando nos mudámos para uma casa com aquecimento central.
Pendurei o calendário do advento na parede. Coloquei velas junto aos retratos dos finados e dentro do castiçal do pai natal de loiça (dos... chineses). Trepei a cadeiras e escadotes, esmifrei-me e estiquei-me ao ponto da contractura para enfeitar a casa toda, até nos recantos onde nunca ninguém vai e ninguém repara.
Cozinhei o banquete, dos acepipes aos pratos principais (sempre mais do que um, para agradar a gregos e a vegetarianos), das sobremesas mais modernas às mais tradicionais e incontornáveis.
Cumpri as tradições de outros antes de mim, honrei-os e dei-lhes destaque numa toalha de mesa herdada, numa iguaria que gostavam, numa música de fundo que preferiam.
Embrulhei os presentes (mal), escondi-os dos pequenos ávidos olhos, e dos olhos não tão pequenos mas igualmente ávidos, até ser altura de os colocar secretamente sob o pinheiro - o secretismo dessa tarefa decrescendo à medida que os pequenos se faziam maiores e menos crentes na magia do senhor do trenó. Esperei, inflexível, pela meia-noite, segurando com rédea curta as ânsias dos menos pacientes, miúdos e graúdos, antes e depois da Era-Pai Natal.
Fiz de um tudo. Ninguém pode, em boa consciência, dizer o contrário. E fi-lo sem um queixume, além de um costumeiro “chiça, que me queimei!”, ou de um eventual “porra, parti a estrela do topo do pinheiro!”, ou ainda de um proverbial “rais partam as luzes que ficam sempre emaranhadas, não há como deslindar esta treta!” – mas quem nunca?
Fiz tudo o que podia. O que devia. O que era suposto. O que se esperava. E talvez mais além do esperado.
Ainda que o meu coração estivesse moribundo e a cabeça longe de tudo e todos. O espírito natalício abandonou-me há anos, tantos que perdi a conta, e nunca encontrou o seu caminho de regresso. O corpo foi cumprindo os requisitos da quadra, mas a alma não o acompanhou. A alma permaneceu ausente.
Fiz de tudo. Não faço mais. Agora deixo o corpo junto da alma, a descansar, por fim uníssonos.
Ninguém me testemunhou, ninguém me presenciou, ninguém me viu.
Ninguém sabe como fui do ponto A ao B, nem o que ganhei e perdi pelo meio, nem no que me tornei quando cheguei.
Falta de interesse ou distracção? Não sei dizer. Sei que se fosse um programa de televisão, já tinha sido cancelado por falta de audiência.
Custa-me pensar que posso ser assim tão invisível, que posso chegar ao fim do meu último dia nesta Terra sem que ninguém saiba nada sobre mim, nem sequer dê pela minha falta.
Avanço, ainda assim, um dia após o outro, empregando os meus melhores esforços naquilo que acredito – ainda que seja só eu sozinha a acreditar.
Sei que não é um caminho fácil de palmilhar, este que eu escolhi. Há muitas pedras bicudas, areia grosseira e pauzinhos cheios de espinhos, e eu pareço caminhar sempre de sandálias!
É ainda mais rude de percorrer quando não há uma plateia a encorajar-me os passos, não há uma pit stop que seja, para me acolher e renovar o alento. E as sandálias.
Olho em volta, nos dias mais cansados, e não encontro um olhar disposto a cruzar-se com o meu.
Talvez pensem que sou invulnerável e determinada, tanto que não careço de apoio. Talvez pensem que o que persigo é só parvo, e prefiram entregar a sua atenção a objectivos de pessoas menos absurdas.
Seja como for, não me detenho.
Hei-de chegar ao fim. Hei-de conseguir aproximar-me do horizonte e vencer a ilusão de óptica, vendo o que se esconde para além dele.
Hei-de rir, no fim. Eu sei que sim.
Só não sei se hei-de rir melhor. Temo bem que quem ri por último, apenas ri sozinho.
Gostamos de pensar que nunca é tarde para nada, que vamos sempre a tempo de tudo. Mas sabemos bem que é uma mentira piedosa que repetimos em loop nas nossas mentes, para nos sossegarmos, para não desesperarmos, para sentirmos que estamos em pleno controlo do nosso destino, e que podemos mudar o curso a qualquer altura, quando muito bem nos apetecer.
Não é essa a verdade. Não podemos. Não tudo, pelo menos. Haverá um momento em que será tarde demais.
É claro que esta é uma assunção generalizada. Há muitas pessoas que mudam não só a rota mas todo o destino final, em idades bem avançadas. Mas a maior parte das pessoas não o será capaz de fazer. A saúde poderá falhar-lhes, senão mesmo as forças de que se alimenta a coragem.
Assim, é vulgar pensar que aos 50 anos experimentamos uma espécie de última juventude.
É a última década em que faz ainda sentido recomeçarmos tudo ou fazermos tudo pela primeira vez, pela última vez.
Não quer dizer que não se aprenda, não se viva e não se exista com entusiasmo aos 60 ou 70, ou mais além. Mas a proximidade do fim inevitável torna qualquer tentativa de inovação muito mais desesperante. Se não mesmo desesperada...
Aos 50 ainda assim não é. Não há o peso da finitude a rondar-nos a porta do pessimismo fatalista – ainda somos meninos para a mantermos firmemente fechada.
Há apenas o optimismo jovialmente amadurecido de quem decide que o que vai viver, doravante, serão escolhas mais conscientes e mais determinadas, e até determinantes.
É a última etapa de um percurso, que já estava calculado, onde ainda é possível arregaçar as mangas, agarrar no leme e mudar a rota por completo.
Virar o leme e inverter a marcha ao navio que somos aos 50 não é tarefa fácil, e exige o esforço e o fôlego que os anos seguintes poderão já não ser totalmente capazes de produzir. E isto, só por si, é capaz de ser gerador de muita angústia: recomeçar agora implica a pressa necessária de se obterem bons resultados mais cedo, mais depressa, para que haja ainda tempo de desfrutar dos louros em boa forma, física e mental.
Há quem chame a esta resoluta decisão crise de meia-idade - o tal apito agudo do último combóio para o destino que poderia ainda ser, a silvar-nos aos ouvidos.
(Talvez esta designação provenha apenas do cinismo habitual dos apupadores de plateia, cuja falta de coragem endémica os impossibilita de tomarem resoluções semelhantes. Mas a já sábia meia-idade confere-nos a noção de que há pateadas que vale a pena ignorar...)
A meio caminho entre o que se foi e o que se será, repousa inquieta uma vontade há muito fechada a sete chaves, porém secretamente acalentada: “e se...?”.
Para os que sentem que é o último sopro de juventude a insuflar-lhes os pulmões de audácia, é a última hipótese de realmente cobrarem a promessa e realizarem o sonho – enquanto há vida pela frente.
Quem toma esta resolução não o faz de ânimo leve nem apenas por impulso leviano. Para coçar essa comichão caprichosa bastaria comprar um carro desportivo ou saltar de pára-quedas.
Não é de caprichos nem de veleidades que se trata. É de um profundo sentimento de se querer viver como nunca se fez até agora – deixando aquela verdade, que sempre residiu oculta no nosso íntimo, passar a viver à flor da pele.
Não raro são incompreendidos. Porquê isso agora? Para quê deixarem tanto para trás, e desatarem a correr, aparentemente para nenhures?
Não é para colmatar defeitos, nem falhas, nem imperfeições, num súbito ataque de virtuosidade. É simples e complicadamente, ao mesmo tempo, para Viver. Ou morrer tentando-o. E se assim tiver de ser, se o seu intento apenas encontrar como destino o rotundo fracasso na metade de vida seguinte, daqui a um veloz piscar de olhos portanto, sabem que exalarão o último suspiro em paz: “pelo menos, tentei”! E só por isso a vida toda já valeu a pena.
É melhor começar a tentar mais cedo do que mais tarde, claro. Mas é melhor mais tarde do que nunca. A meio é também tempo, é também vida. E o meio da vida de cada um, só cada um sabe onde fica ao certo: algures entre um passado cinzento e um futuro mais brilhante.