Ninguém, como os pais, sabe como o Tempo não conta.
Ninguém como nós é capaz de perceber a imutabilidade tranquila do Tempo. Ainda que, concomitantemente, o vejamos a passar célere como um relâmpago, a escapar-se por entre os dedos como areia fina.
Mas sabemos que o Tempo não conta, não é nada, é só uma ilusão, um marco compassado no calendário, um débil sopro de vento nos cabelos da eternidade.
Eles cresceram, mas não mudaram.
Os olhos são os mesmos, o sorriso, os medos, as alegrias, as derrotas e as vitórias, os passos e as hesitações, a coragem, nada mudou.
O Tempo não passa de uma intrincada ilusão de óptica.
Pois se eles continuam a caber direitinhos, sem tirar nem pôr, no nosso colo como no nosso coração.
Vivemos no arrepiar-caminho dos dias, horas contadas, ócio distribuído meticulosamente no calendário. Não temos tempo livre para muito mais, menos ainda para nos embrenharmos em pensamentos mais aprofundados sobre culpas e culpados, acerca de tudo o que nos aconteceu de menos positivo nas nossas existências.
É mais cómodo, por isso, dispensarmos uma fracção do nosso tempo para as análises fáceis e prêt-à-porter das I.A. – leia-se inteligências anedóticas – de auto-ajuda e mantras que ficam no ouvido, e assim vamos absorvendo, sem darmos por isso, o discurso da “culpa é sempre do outro”. Mas será mesmo?
Note-se, não há mal nenhum em cuidarmos de nós, em adoptarmos condutas cautelosas, em resguardarmo-nos de quem nos incomoda. Agora mesmo, se fizermos esse exercício, seremos capazes de pensar em uma ou duas pessoas de quem nos afastámos ou de quem estamos a fazê−lo.
Mas será que, por vezes, o tóxico não mora cá dentro?
Seremos capazes de nos auto-analisar com honestidade? Seremos capazes de identificar a toxicidade que carregamos? Quão fundo conseguimos olhar no espelho? Será que o tóxico é mesmo sempre o outro? Seremos capazes de reconhecer o tóxico em nós?
Olharmo-nos com sinceridade requer coragem. E honestidade moral, claro, mas acima de tudo coragem. Porque o que viermos a descobrir sobre nós mesmos poderá deitar por terra o conceito que temos sobre o que somos. É um espelho que corremos o risco de estilhaçar, e que, por muito que o tentemos consertar, nunca mais reflectirá a nossa imagem daquela maneira.
Isto é tanto mais difícil quando sobrevivemos a contextos de relacionamentos com pessoas que foram, por inquestionável definição, tóxicas: negligentes ou abusivas, senão mesmo agressoras.
Levou-nos tempo a cicatrizar as feridas e a reconstruir o puzzle desfeito da nossa identidade – eventualmente com algumas peças em falta para sempre. Olharmo-nos ‘lá’ por dentro agora, tipo scanner do Terminator, à procura de falhas e defeitos a abater, pode comprometer a integridade geral de um ego que tanto custou a recuperar. Sob o risco de tudo se desmoronar novamente, e sem hipótese de recuperação, desta feita.
No mínimo, em vez de esgravatar até ao âmago, preferimos apenas sacudir as migalhas e as poeiras mais grossas das nossas imperfeições da superfície da nossa personalidade, e continuarmos a viver. No máximo, ostentamos ao peito os defeitos subsequentes como medalhas que ganhámos nas batalhas sangrentas de um atribulado passado, as quais sentimos ter o direito incontestável de exibir. E quem quiser, que lide.
Consideramos que tudo o que passámos nos tornou especialistas na matéria, que somos capazes de reconhecer um ser tóxico até pelo recorte da sua sombra. Mas não reconhecemos o tóxico que nos olha todos os dias desde o espelho.
É uma bomba-relógio que levamos dentro, mas que, em vez de explodir e devastar tudo à volta de uma vez, vai libertando o seu veneno em golfadas cíclicas e precisas. Manifesta-se em elogios que o não são de facto, em promessas que não tencionamos cumprir, no interesse desatento que prestamos, ou, pior ainda, no cultivo de atenções que semeamos no quintal da nossa vaidade, mas às quais apenas fingimos corresponder.
Assim, tornamo-nos capazes, sem nos apercebermos, de boicotar a felicidade alheia, de minar a confiança dos que aliciamos a aproximarem-se, ao oferecer-lhes primeiro uma mão amiga e um ombro à laia de porto-seguro, para logo depois os deixarmos cair no vazio silencioso da nossa indiferença súbita.
E porque não estamos verdadeiramente preparados para dar, fingimos que oferecemos. Porque achamos que somos donos da verdade no que toca a sobreviver à dor imposta. Porque, apesar de até nos apetecer, receamos atribuir novamente um estatuto de importância a alguém nas nossas vidas, que potencialmente o poderá defraudar mais além. Porque nos convencemos que o nosso percurso será menos atribulado se não dispersarmos a nossa energia e atenção dando-as levianamente a outros.
Porque na nossa cabeça cabe apenas uma sentença: se eu sobrevivi, os outros que o façam também!
O que não nos cabe dentro do nosso duro crânio é que sobreviver não é o mesmo que viver. Exortar as dores passadas metamorfoseadas de forças presentes é uma falácia cruel que nos contamina desde dentro como um cancro lento mas irredutível.
O sofrimento que tivemos não nos tornou especialistas na matéria, nem tão-pouco nos isenta da capacidade de fazermos os outros sofrer também. E muito menos nos confere impunidade se o fizermos.
Tal como alguns foram culpados do sofrimento deliberado que me causaram, eu sou inequivocamente culpada do sofrimento que causei a outros, deliberadamente ou não.
O que nos falta, dizia, é coragem e honestidade para nos analisarmos em profundidade, e para percebermos que ninguém se cura sozinho. A reconstrução emocional autónoma (que não dispensa o acompanhamento psicológico profissional) é um trabalho em duas partes: a interior, pela auto-análise, e a exterior, pelo contacto sincero com o outro - permitirmo-nos o risco de conhecer o outro, de o deixarmos conhecer-nos, de lhe prestarmos auxílio, de consentirmos que nos auxilie. Mesmo sabendo que há o risco da decepção.
A toxicidade que nos infligiram circula livre nas nossas veias e isso não nos torna mais fortes, nem mais lúcidos, nem mais hábeis. Apenas mais sós.
Dotarmo-nos de fria implacabilidade e atitude calculista não nos torna inexpugnáveis: é justamente o oposto, tornamo-nos mais fracos desde dentro, com o tóxico (agora em nós) ainda no comando.