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Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

Crónica do Quotidiano

Ana Pinto

Escolher Ser

Foto de Damla Karaağaçlı no Pexels

Hoje olhei para a minha filha adolescente, e pensei “está a viver o que tem de viver, uma vida toda, entusiasmante, à frente dela, nova em folha, pronta a explorar!”

Lembrei-me de mim com a sua idade (e nos anos subsequentes), em que a juventude significava possibilidades abertas e destino traçado, tudo junto, ao mesmo tempo. Emocionei-me, e não há como sermos pais e não o fazer, não o sentir.

Percebi que o destino que ela quiser percorrer é seu, e o meu papel é fornecer-lhe o benefício da minha experiência, se dela ela escolher usufruir. E só. O que somos, a partir de um certo ponto de independência após o corte umbilical, é escolha nossa. Ela terá a dela. Todos temos a nossa.

Lutamos todos os dias pelo que achamos ser o nosso dever lutar.  Porque nos disseram – quem? Quando? Onde? – que era nosso dever lutar. Fazer menos era ser menos. Fazer diferente era ser diferente. Ninguém quer ser menos ou diferente.

Mas... o que significam este “menos”, este “diferente”? Significa querer outra coisa? Significa ser outra coisa? E isto, querer outra coisa, querer ser diferente, é forçosamente mau? Não. Não é.

Esqueçam os memes. Esqueçam os vídeos. Esqueçam as teorias da conspiração. Esqueçam as terapias self-care. Esqueçam tudo.

Ninguém nunca chega a lado algum, se não for honesto consigo mesmo, se não tiver um momento sincero para inspirar fundo, e olhar para o âmago de si próprio. E não há médico, terapeuta, guru, vendedor da banha da cobra, amigo, parente, cônjuge, colega, não há ninguém que possa fazer isso por nós, nem de nos levar, pela mãozinha, a fazê-lo.

Olha para ti. Se necessário for, despe-te frente a um espelho. O que és, o que sentes, o que de facto queres, está tudo aí.

Se falta fizer, procura a ajuda onde sentires que ela está; porém, examina-a, quando a encontrares, mede-a, pesa-a, avalia-a, verifica se é de facto aquilo que pensavas que obterias. Não faz mal se não for, mas não te contentes com sucedâneos.

Continua. Persiste. Lê, observa, contempla, escuta, analisa, avalia. Volta atrás as vezes que forem necessárias. Não se consegue tudo à primeira, consegue-se, contudo, ter um pouco mais a cada dia. Respirando, recuperando o fôlego nos intervalos.

Inspira. Ninguém sabe mais de ti do que tu.

Se há médico, terapeuta, amigo, cônjuge, parente que não te entende, porque não te escuta, fala mais alto, GRITA! Ou deixa-os a fazer o que fazem melhor, que é ouvirem apenas o som das suas vozes. Escolhe quem te ouça, ou segue, só.

Mas sabe que não estás só. Há muita gente a sentir o mesmo que tu, e a não saber também o que fazer com isso. E não faz mal. Podemos não saber tudo, podemos (ainda) não conseguir resolver nada. Mas há mais gente a sentir o mesmo. Não é preciso sentirmo-nos sós.

Contudo, estar só não é sempre mau. Às vezes, as que forem precisas, é mesmo imprescindível. Fica só quando a necessidade de assim estar for mais importante, para abafar o ruído da opinativa multidão à volta. A solidão desejada não é um degredo nem tem de ser permanente. É uma forma de obter o silêncio necessário para ouvir melhor a voz que temos dentro, que às vezes fala baixinho.

Nunca penses que és uma aberração só porque não há ninguém como tu. Não há ninguém como tu. O que há de fascinante num par de gémeos monozigóticos não é o que têm em comum – isso é notório e nada surpreendente – mas sim tudo aquilo que os distingue. Sê a especificidade única que és, e partilha-a com quem se interessa por partilhar, porque lhes interessa a honestidade de quem ousa ser o que é – ou pelo menos o tenta honestamente, todos os dias.

Todos os dias. Há dias que são de vitória, de alcance. Há dias que são de recuo. Nunca de derrota. Mesmo que ela te pareça decalcada no teu ADN – não está. Mesmo que te sintas a desistir, mesmo que apenas tenhas vontade de largar tudo, mesmo que penses que nada te resta senão atirar a amarrotada toalha ao chão, para deixar tudo para trás. Não deixes.

«Não se pode voltar atrás e fazer um novo começo, mas pode-se começar agora mesmo e fazer um novo final» - a frase, de James R. Sherman, publicada no livro “Rejection”, em 1982, é uma das mais reproduzidas, por essa internet afora. Apesar disso, é uma frase de que gosto muito, pelo que possibilita. Significa que não há redenção, mas há a hipótese de algo potencialmente melhor: há a esperança, há a mudança, há evolução. Porque há autodeterminação, há livre arbítrio, há escolha.

Sê o que escolhes ser. Sê o que sentes ser. Sê o que és.

Mudar, lutar, trabalhar, resistir, perseverar, desesperar, tropeçar, tombar, levantar-se de novo. Tudo fica mais leve e exequível quando sabes quem és. E quem és, o que és, é teu. O que tu decides que és ninguém tem o direito de negar. Conquanto não infrinjas a lei nem os direitos dos demais, está tudo bem!

Deixa as palavras dos outros, que nada têm a decidir sobre o que é intrinsecamente teu. Sê o teu próprio guru! E se houver mote ou lema de outrem que valha a pena seguir, que seja poesia. Eu tenho o meu.

«[...] És melhor do que tu.
Não digas nada; sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.
»

(Fernando Pessoa)

 

Autómatos de Carne e Osso

Foto de Moose Photos no Pexels

A Vida acontece quando se espera que ela aconteça. E também quando já não se espera nada.

Por mais difícil que seja acreditar, a Vida acontece até quando se desespera por senti-la na ponta dos dedos, nos poros à flor da pele, num único fio de cabelo que seja. Não se vê, não se sente, mas ela ali está, a passar-nos pelas mãos, a varrer-nos a cara, a soprar-nos o cabelo.

Sentimo-la quando o coração acelera, sem razão, só porque houve um pensamento diferente a cruzar-nos as ideias do costume.

Sentimo-la num fôlego que nos custa a recuperar, quando há uma emoção desconhecida a acelerar-nos o sangue.

Pensamos, frequentemente, que o que queremos é a Felicidade, que é difícil de alcançar e mais ainda de manter.

Mas o que nos impulsiona é querer Viver – sentir que vivemos de facto. Dias tristes ou dias alegres, com o coração dilatado de paixão, ou contraído de pesar. Dias de sol ou nevoeiro. Dias preenchidos de presença, ou condoídos de ausência. Mas todos Vivos.

Caminhamos aturdidos, anestesiados, de olhos fixos em planos que não concretizamos nem abandonamos, de energias gastas em tarefas que nunca se esgotam, de rostos apáticos e gestos moribundos – e no dia seguinte, repetimos tudo do princípio.

Achamos que o que nos falta é sermos felizes, é termos um bocadinho de sorte para o conseguirmos ser.

Mas o que nos falta é Viver. É deixar que o que sentimos seja de facto o que dizemos sentir (e não a mentira que nos salta da boca automaticamente); deixar que o que sorrimos seja mesmo o nosso sorriso (e não o esgar que desenhamos no rosto por hábito); deixar que o que nos entristece tenha direito ao seu tempo e espaço (e não ser varrido para debaixo do tapete da contenção, controlado e quieto).

Não Vivemos – sobrevivemos. Não queremos – fingimos vontade. Não vemos – tacteamos às cegas.

E, no maravilhoso e impreterível entanto, a Vida rodeia-nos, e fá-lo sempre, apesar de tudo. Apesar de tudo, Ela está aqui, sempre à nossa volta, ao nosso alcance. Pronta para que a Vivamos, se a escolhermos Viver.

Se o não fizermos, Ela prosseguirá a sua rota indelével, o seu curso incansável. Ela não precisa de nós para ser Vida. Nós é que precisamos Dela para sermos Nós. Porque para Viver, não basta estar vivo.

E sabemos disso. Tal como sabemos a que sabe Viver. Já o fizemos umas quantas vezes, as suficientes para lhe aprendermos o gosto e não o esquecermos.

Crescemos, avançamos no tempo, e esquecemo-nos de continuar a Viver. Há um momento qualquer em que, pura e simplesmente, paramos.

“Isso é ser adulto” – justificamos.

Mas é ser adulto, ou é estar morto antes de falecer?

Quando vemos notícias de gente a padecer o inferno na Terra em guerras intermináveis, sucessivas, já todas indistintas e longínquas (acabam sempre por tornar-se longínquas...), e não choramos, vivemos?

Quando vemos alguém a precisar de ajuda, no meio do nosso caminho, e atravessamos a rua, vivemos?

Quando dormimos noites sem sonhos – mas amiúde cheias de pesadelos – vivemos?

Quando passamos dias, semanas, meses, anos, sem uma réstia, uma acendalha de emoção a iluminar-nos os olhos, a rasgar-nos o peito – vivemos?

Ou apenas funcionamos?

“Somos adultos, temos de funcionar.” – sentenciamos.

Para funcionar estão as máquinas – e as máquinas não precisam de Viver.

Nós sim. Precisamos que estar vivo signifique de facto Viver. Senão, nada mais somos do que autómatos de carne e osso.

 

Lisbon Story – lusa alma

Lisbo story.jpg

Procurava na RTP-play algo para me distrair num serão, e encerrar um dia cansativo da melhor cómoda forma. Os dedos percorreram a longa lista de propostas e finalmente detiveram-se numa: Lisbon Story. Perfeito. Terminar o dia num regresso confortável ao passado, sem surpresas nem desapontamentos, sem ter de investir no desconhecido, apenas apreciar o que já se sabe ser uma aposta ganha. Play.

Lisbon Story remete-me para as minhas recordações de everything portuguese desde que me lembro de ser gente (gente portuguesa, claro): A Canção de Lisboa, O Páteo das Cantigas, Maria Papoila, O Pai tirano, Amália Rodrigues e os seus trinados caracóis, a minha mãe a cantar fado enquanto lavava a loiça.

Não sei muito bem porquê.

Se calhar, porque nunca nos sentimos tão nacionais como quando vistos por olhares estrangeiros – em particular, os que são peritos em olhar, como os cineastas. Sentimos no pulsar do coração, na densidade dos ossos, no fluir do sangue, a imensidão da nossa portugalidade quando dissecada pelo olhar estrangeiro. Orgulhamo-nos quando os olhos alheios nos discernem e nos elevam, como se nunca nos tivéssemos visto antes.

Ou, se calhar, porque sentimos que, finalmente, bless the lord!, alguém nos reconhece pelo que realmente somos.

Mas não acho que seja isto o que senti e que ainda sinto, sempre que vejo Lisbon Story.

O que sinto – apesar, perdoem-me os regionalistas, de apenas se passar em Lisboa – é o olhar para o espelho. Não sei se, de facto, aprecia a identidade integral de um país tão pequeno, mas tão, tão díspar! Mas sinto que o reconhece, que demonstra algo da Alma Portuguesa – algo tão fundamental e ancestral, que mesmo alguém do Norte o identificaria!

E acho que muito disso se deve à presença feérica dos Madredeus na película. Há qualquer coisa em Madredeus que nos transcende e unifica, para lá do fado e da saudade, para lá da identidade uníssona da guitarra portuguesa, e me faz suspirar e palpitar num ritmo cardíaco que me é superior, e, ele sim, transcendente. Ou talvez imanente? A filosofia do 12º ano já mora longe na minha memória – que me perdoem o Nietzsche, o Hegel e o Kierkegaard, já não vos recordo com a devida propriedade...

Sei apenas o que a minha alma pressente, e o meu coração, imortal, reconhece (e que a voz cristalina e intemporal da Teresa Salgueiro revela irrepreensivelmente): a alma lusitana no seu mais nobre expoente – a Arte.

O que sinto é isso: orgulho profundo, nesta maravilhosa vertente da vida, de ser portuguesa.

 

Quando eu morrer

[crónica narrativa]

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Quando eu morrer, gostava que se escrevesse na minha lápide “Deu o seu melhor”. Mesmo não sendo verdade. Não dei sempre o meu melhor mas só porque não sabia que tinha melhor para dar. Dei tudo o que tinha, mesmo sabendo que o que tinha era muito pouco.

Hoje vejo, com a clareza que nunca tive, o meu percurso de vida, e sei o porquê de cada passo em falso, como nunca o soube. É a clarividência da morte, suponho. Quando ela chegar – e já estará para breve, ou pelo menos assim o ditam as rugas que me pendem do corpo e as forças que me falham no espírito – vou ser uma defunta muito esclarecida. Pena que o não tenha sido mais durante a vida...

Dizia eu que pouco tinha. Pouco era também. Depois do primeiro fulgor da juventude, quando somos só sonhos e vontade de viver, os anos foram trazendo mais e mais amarguras, que eu, à laia de digestão fácil, engoli inteiras e a seco. Umas atrás das outras, sem parar para pensar ou sequer respirar. Sentia o seu gosto amargo dentro de mim, a envenenar-me. Mas nada fiz, não procurei água ou outro bálsamo que aplacasse aquela fúria incandescente a descer-me pela garganta. Ficou tudo carbonizado à sua passagem. E nada fiz para contrariar o desalento invasor, nada disse, a ninguém pedi ajuda.

Até um deserto de carvão me crescer dentro. E, já se sabe, no deserto nada medra, nada prospera, nada nasce. É só vento e paisagem agreste.

Assim me fui deixando ficar, sentada a um canto escuro e solitário da minha mente, enquanto enviei as ‘outras’ todas para a frente da batalha dos dias: enviei a irmã, a mãe, a filha, a esposa, a dona de casa, a avó, a cidadã, a amiga de ocasião. Elas existiam por mim, faziam o que era preciso ser feito, diziam o que se expectava ser dito, bem-mandadas, marionetas de mim mesma. Mas eu não residia em nenhuma delas, eu não era senão aquele pedaço disforme e encolhido, poisado nas dobras do tempo, como um guardanapo enroscado, desirmanado e perdido no rol de roupa suja no fundo do cesto.

Tudo que dei foi dado por ‘elas’. O pretenso melhor de mim ficou sepultado comigo na vida interior que guardei, medrosa e trágica, longe da vista e dos ouvidos de todos. Porque me convenci que o meu melhor não existia, no seu lugar apenas havia o maior do pior de todos os tempos, que não merecia privar com os outros à minha volta, todos tão melhores do que eu.

Assim, o melhor de mim nunca viu a luz do dia, nunca sorriu na minha boca, nunca abraçou com os meus braços, nunca amou com o meu corpo. O melhor de mim nunca viveu para lá das catacumbas da minha cobardia e comigo descerá ao âmago da terra.

Agora que o fim me cerca, vejo-o com clareza, como nunca vi: não vale de nada sermos todas as pessoas que temos de ser se não morarmos em nenhuma delas. Não vale de nada darmos tudo o que se espera que dêmos se nessa dádiva não formos inteiras. E de nada vale a benevolência que oferecemos aos outros se não a dermos a nós próprias também.

Gostava que o meu epitáfio dissesse “Deu o seu melhor”, mas não seria verdade. Talvez seja mais honesto que se inscreva: “Não deu o seu melhor porque não sabia que o tinha guardado dentro de si”.

 

Dos pequenos reza a história

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Os actos de coragem parecem estar sempre associados, no nosso imaginário colectivo, a indivíduos altos e fortes. Astérixes à parte, os heróis masculinos da ficção costumam ser figuras espadaúdas e de estaturas muito acima da média.

Claro que a ficção é uma coisa, a vida real é outra – ainda que esta última, está provado, seja sempre muito mais estranha que a primeira. Sobram exemplos na História de homens que não viraram as suas diminutas costas nem deram corda aos seus pequenos sapatinhos para fugirem das mais atrozes adversidades: Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Jr., Yuri Gagarin, ou, mais recentemente, Volodymyr Zelensky, o famoso Presidente da Ucrânia, cujos testículos alegadamente podem ser vistos da lua. É só googlar, gente [estes e outros nomes, não os testículos do Zelensky].

Mas não é de homens baixos mundialmente célebres que quero falar. Gosto mais de falar do que conheço, e celebridades não conheço nenhuma. Prefiro falar de dois que me são próximos: um por ascendência directa, na genética e no coração; outro por afinidade instituída, e, acredito, por afecto adquirido. Um, já não pertence a esta dimensão da realidade há alguns anos. O outro ainda está por cá, de boa saúde, e sempre a fazer coisas que dão muito que falar.

Comecemos pelo primeiro.

Anos 80 do século passado. O flagelo mundial da SIDA chegava também a Portugal. Nas notícias, um senhor de Viana do Castelo, com um apelo urgente: estava a morrer de SIDA, e queria deixar os pais, que dele dependiam, mais confortáveis nos últimos anos das suas vidas – embora para sempre destroçados pela morte do seu (creio que) único filho. Por ter pouco de seu, apelava às companhias de seguros nacionais que condescendessem em fazer-lhe um seguro de vida, mesmo sabendo que esta pendia por um frágil fio.

Uma das agências de seguros que este senhor visitou foi a que o meu pai geria na época. O senhor esperou pelo final do dia, paciente e conscientemente, porque, apesar da humanidade ainda saber pouco sobre a doença, o medo riscou como um fósforo, ateando a discriminação preconceituosa nos comportamentos de todos. Assim, quando o escritório ficou vazio, o senhor em questão entrou, e pediu para falar com o meu pai, que o recebeu no seu gabinete. Delicadamente, o senhor afastou mais a cadeira que o meu pai lhe indicava, certificando-se que dele se sentaria a uma distância da qual a DGS em período COVID se poderia orgulhar.

É óbvio que a conversa não teve o desfecho esperado pelo senhor. Imagino que a esperança, que conduzia os seus passos mais do que as suas próprias pernas por aqueles dias, tenha diminuído ainda mais depois daquela conversa. Por muito que gostasse, o meu pai não poderia dizer-lhe nada diferente do que ela já tinha ouvido da boca de tantos outros gerentes de agências de seguros, por aquela e outras cidades fora: as seguradoras são um negócio, e nenhuma negoceia com probabilidades inequivocamente em seu desfavor. E, seguramente, não praticam caridade.

Contudo, mesmo sabendo que seria pouco, o meu pai prometeu fazer o que estivesse ao seu profissional alcance para o ajudar, ainda que um seguro de vida estivesse impreterivelmente fora de questão. O senhor agradeceu, e a conversa findou quando os dois se levantaram.

Nesse momento, o meu pai estendeu-lhe a mão. Todas as suas conversas terminavam assim, e ele não via razões para aquela ser diferente. O senhor agradeceu e recusou o cumprimento, respeitosamente. Mas o meu pai insistiu, aproximando-se dele de amigável mão resolutamente estendida. Um pouco aturdido, o senhor aquiesceu e aceitou que a mão do meu pai apertasse a sua, feita de pouco mais que pele e osso. No final, agradeceu o gesto de calorosa aproximação, num momento em que todos à sua volta faziam o oposto. Numa época em que a ignorância torpe se aliava ao desconhecimento que a ciência ainda tinha sobre a doença, aquele gesto foi inaudito e, sim, corajoso. O meu pai não sabia mais que o resto do mundo, não sabia se aquele contacto seria ou não um sério risco de contágio. Sabia, sim, que tinha à sua frente um homem a precisar de um gesto sincero de fraternidade. E isso era tudo o que precisava de saber.

Lembro-me de, na altura, o meu pai nos ter feito o relato sobre este encontro, quando nos reunimos à mesa de jantar. Eu era uma criança e pouco percebia do que realmente se falava quando se falava de SIDA. Creio que o mundo inteiro era uma criança ignorante quando se falava de SIDA. Mas uma coisa eu percebi: percebi que o gesto do meu pai foi algo de substancialmente importante, mesmo que eu não soubesse exactamente porquê. E que, com ele, contrariou algo de muito feio que se multiplicava no mundo – a frieza egoísta perante o sofrimento do próximo. E fiquei orgulhosa.

Hoje sinto o mesmo orgulho ao recordar esta história. Houve muitas outras em que o meu pai deu provas da sua coragem, em que foi David contra diversos Golias – que tinham outros nomes, como suborno desavergonhado, autoritarismo hierárquico, ou racismo aviltante, só para designar alguns. Nem sempre agiu por escolha ponderada, mas, as mais das vezes, por reacção impulsiva. Ou apenas porque alguém tinha de fazer alguma coisa.

E é aqui que entra a segunda figura, que, tal como o meu pai, é mais de reagir por impulso do que por reflectida decisão – ainda que jure a pés juntos o contrário, mas nós, familiares acostumados, é que sabemos bem o que a casa gasta. Ele decide sempre depressa, no calor do momento, corrige a mão ongoing, reajusta e redirecciona, mas não pára. Diz o que pensa, de mal ou bem sem olhar a quem, o que já lhe valeu, no passado, uma ou duas contrariedades – daquelas que aleijam – de uma ou duas pessoas contrariadas.

Estamos habituados, nós, família, amigos e todos que o conhecem, a vê-lo, volta e meia, nas bocas noticiosas deste Portugal dos (direitos básicos) pequenitos. Já sabemos, bocejamos, e continuamos a nossa vida. Ele não pára, e faz de um tudo para defender o que tem de ser defendido. Porque é justo e necessário. Porque alguém tem de fazer alguma coisa.

Agora é notícia de novo, sentado bem no meio praça da opinião pública, mas desta feita porque jurou não fazer nada, e que neste contexto é fazer muito. ‘Gesto nobre e valente’, dizem uns; ‘desculpa excelente para não fugires à dieta’, dizemos-lhe nós, porque sabemos que ele sabe que o sarcasmo com que o espicaçamos é retrato fiel do nosso apoio absolutamente incondicional. E mais não precisamos dizer. Até porque tanta determinação concentrada numa pessoa tão pequena, cansa. Não a pessoa, mas a nós que o vemos há anos nesta roda-viva, que ouvimos com nitidez as engrenagens a rodar naquela cabeça que não sabe pensar em sossego como os demais.

Só podemos esperar que ele também canse - e de preferência, até ao esgotamento nervoso - os politiqueiros decisores que se andam a fazer de surdos, e que os ponha a agir, quanto mais não seja para não terem de levar com ele outra vez.

Porque ele tenta contrariar algo de muito feio que se multiplica no mundo: a frieza apática perante a contínua falta de respeito pelo próximo, que somos todos.

 

A inevitabilidade do inesperado

Foto: Aaron Burden no Pexels

Às vezes, para a nossa dor despertar do apático entorpecimento em que se encontra, precisa de se ver espelhada na dor dos outros.

Pensei que não sentiria nada. E, durante muito tempo, estive certa.

A sua partida não passou de uma inevitabilidade há algum tempo, senão esperada, expectável. Eventualmente, contamos os dias. Mas os dias passam, e as semanas, e de repente, os anos. E tudo se mantém. Acreditamos – eu acreditei – por um segundo que afinal já não seria em breve. Que haveria mais tempo. Sem me dar conta do tanto tempo que já passara.

E a inevitabilidade – expectável e até esperada – inevitavelmente acontece.

Queremos a surpresa, o choque – afinal até passou tanto tempo – mas não existem, de facto. É impossível haver choque na mesma equação onde o inevitável prevalece e sabemos que não tarda, tarde o que tardar.

Por isso, aceitamos, e respiramos o alívio ou algo que o valha. Afinal de contas, não se contava com outra coisa.

Os preparativos organizam-se, os contactos efectivam-se. Tudo decorre com a natural infalibilidade das coisas finitas. Da condição mortal que toca a todos. A morte organiza-se mais depressa do que a vida. Porque temos pressa de recolher ao luto privado que escolhermos praticar e purgar. Apressemos o luto público, que tem de ser apresentado e tolerado. Recebamos os cumprimentos que se acumulam como uma montanha de ruídos de fundo que escalamos, alheados, na nossa mente, como um registo áudio ininterrupto onde o som é monocórdico e invariável. Os cumprimentos fúnebres, de resto, são mais para quem os dá do que para quem os recebe. Salvam-se uns 5% que têm realmente significado e conteúdo, completamente dissonantes do usual burburinho lúgubre. Os 5% de verdadeira empatia, que sentiremos a confortar-nos por muito tempo. Talvez para sempre.

Mas eu não senti nada. Até ao levar do caixão, mente, coração e alma permaneciam, estranha e contrariamente ao costume, incólumes e vazios. Depois houve um microssegundo de emoção. Se calhar, nem tanto, só um estremecimento. Culpa, certamente, da outra implacável inevitabilidade que emergiu: era para sempre. O adeus eterno. As lágrimas assomaram por tudo o que foi dito, por tudo o que ficou por dizer, por tudo o que nunca mais se dirá. Um breve suspiro de dor e resignação.

Os dias seguintes trouxeram a normalidade mais depressa do que poderia antecipar - e eu já previa que seria bastante rápida. Não houve mossa, nem perturbação, nem o mais ligeiro incómodo. Mente, coração e alma incólumes.

Pensei que seria assim para sempre e que não havia mal nisso. Não sentimos todos o mesmo, nem sentimos o mesmo todas as vezes.

Até que a dor cinzenta e magoada nos rostos dos outros destapou à bruta o hematoma, como quem retira impiedosamente um penso de uma ferida que nem sabíamos que tínhamos.

É isto empatia ou reminiscência egoísta? Talvez qualquer coisa algures no meio.

Sei que agora tenho mais trabalho pela frente: lidar com a inevitabilidade de um luto que acreditei poder evitar. Mas o inevitável acontece. Sempre. Inevitavelmente.

 

Da culpa e do silêncio

cultura-silencio-scaled.jpg

Ouço os passos impacientes e os suspiros irritados.

Ouço, do lado de lá da minha porta firmemente fechada, a incompreensão e a intolerância. O paternalismo e a arrogância.

Ouço-os, nitidamente, a tinir em furioso crescendo.

Aos ouvidos destreinados, o silêncio parecerá reinar. Mas não é verdadeiro. O ruído é ensurdecedor: palpável como uns dedos gelados à volta do meu/seu pescoço.

Respiro fundo e preparo-me para a batalha. Não tarda, troarão as vozes armadas de insultos e súplicas, e a guerra será, de súbito, óbvia para todos.

Mas ninguém me/a defenderá. Ninguém avançará um passo protector na minha/sua direcção.

Nunca foi de outra maneira. Hoje não será diferente.

E amanhã, no elevador, os olhos fingirão uma naturalidade que não têm, reforçada num ‘bom-dia-como-está?’ distante e metido consigo próprio.

«Nunca nos metamos na vida dos outros! Credo! Jamais! Corremos o risco sério de nos importarmos com alguém além de nós próprios, e isso traz uma catrefada de aborrecimentos. Sentir, pensar, agir, ajudar. Tudo perigoso e altamente subversivo.

E se nos tornarmos em boas pessoas? Isso é trabalho que nunca mais acaba!

Não, não, não. Finjamos que nada sabemos. O que se ouve de umas casas para as outras, afinal, pode ser tanta coisa! O televisor alto de demais, ou um vídeo no telemóvel, ou até – quem sabe – um ensaio de uma peça de teatro amador! Há gente com hobbies tão estranhos…

Nada, nada, nada! Não é nada connosco!»

Quando o silêncio for verdadeiramente constante; quando o último golpe for irreversivelmente desferido; quando eu/ela, por fim, jazer solitária e traída, sairão/sairemos todos dos seus/nossos covis para comentar a sua/nossa estupefacção aos microfones dos repórteres da morte.

Ilesos e inocentes.

«E então? A culpa não é nossa! Ela mora sempre ao lado…»

O silêncio não mata, mas ajuda. No silêncio, somos todos cúmplices.

 

(Número de mulheres mortas em contexto de violência doméstica em 2022, em Portugal: 22)

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